Perigos Continentais



WanGo's. Lain
Perigos Continentais


1

A Casa e a Floresta.

Estar naquele lugar lhe trazia a tona certo incomodo. Nada particularmente ruim ou doloroso, a ponto de não o suportar. Era um incomodo antigo, por isso já se acostumara com ele... Não era provocado por medo, nem por peculiaridades do clima neste dia específico e em todos os outros que se tinha conhecimento.

Era reavivado pela familiaridade.
Uma sensação de já ter vivido ali – como quando visita-se uma casa onde se passara a infância: quando as lembranças se tornam mais vívidas e o cheiro no ar é cruel... Quando o riso das piadas sem graça é automático. No momento em que todas as coisas são lembradas, embora não necessariamente dignas disso.
Uma vida inteira num lugar do qual só ouvira falar.

Ao redor, a floresta era de abajures com folhas verdes no alto. A névoa era uma corrente pesada, cristalizada pelo frio e quase sobrenatural... E a Floresta Nevoenta sussurrava enquanto pedia silêncio.
A nova casa assemelhava-se a uma geladeira – de madeira. A casca branca e rachada por fora, o ar seco e sorridente por dentro: como um convite sob a tênue lamúria das colunas grossas e dos degraus que rangiam desbotados pela passagem do tempo, e pregados ao batente em frente. No alto, sobre a fachada, um olho de vidro manchado pela friagem observava a dança inebriante lá fora...

Kathelina era a mulher com medo, e apoiava-se no áspero e rijo corrimão. Havia algum tempo que estava parada ali com os olhos semicerrados, tencionando avista-lo, mas não enxergando com clareza. A névoa era engraçada – branca, cinza, levemente alaranjada – e a fazia sentir-se temerosa. Uma gélida brisa eriçou, mais uma vez, os pelos de seu corpo, e ela sentia o frio queimar suas mãos no contato com a madeira, predizendo o inverno vindouro que seria rigoroso – ou talvez só estivesse brincando.
Talvez tudo não passasse de uma brincadeira sem graça.
Desceu os degraus e seguiu em frente, cortando a vastidão branca e cinza e laranja como uma frágil sombra. Mais rapidamente do que gostaria, a casa desapareceu às suas costas, tornando o Mundo misterioso e quieto. Juntou os braços ao corpo e continuou. No limiar da vista, um negrume surgiu súbito sobre as folhas caídas e os pinhões-de-sangue, tornando-se cinza conforme ela avançava... Ao se aproximar, cautelosa, parou ao seu lado.
Ficou em silêncio... E o silêncio pareceu ficar nela. Pois, porém, quebrando-o como uma pedra batendo no vidro da janela, falou:
– Esta névoa é horrível... – disse para o negrume cinza. – Sempre a achei assustadora… Olly?
“Sempre…?”
A resposta não veio. O negrume, que era um menino, estava imóvel e olhava em frente, sem nada ver além da brancura-alaranjada. Kathelina mirou a face esquerda dele e sorriu um sorriso sem peso.
– Ollyver? – chamou, sacudindo-o pelo ombro ossudo.
O menino fechou os olhos. Ele deveria estar esperando por isso... “Quem impedirá?”, perguntou o pobre Tumbi. “Assustadora…, Tumbi?”
Abriu os olhos.
– Tanto quanto morrer – respondeu, sem tirar a visão da pintura que se transformava a cada segundo; viva numa agonia de formas gélidas e grotescas.
– Oh. Realmente – concordou Kathelina. – Qual você está lendo?
– O terceiro...
– Deve estar ruim de enxergar as letras?
– Não estou lendo agora.
– Não? Ah... Quantas vezes já leu este?
– Não lembro.
A mãe suspirou longamente, passando a vista ao redor. Houve a hesitação, e depois um longo silêncio.
– Eu acho que você devia se lembrar... – disse ela por fim, num tom descontraído. – O que você acha, Olly? Digo, desse lugar?
O menino não esboçou qualquer movimento além do abrir e fecha dos lábios:
– Parece bom.
– Bom lugar... Boa casa.
Em seguida, ela lhe cutucou outra vez no ombro.
– Sabe – disse inclinando-se, e isto era um segredo –, seu pai gostava deste lugar – fez uma pausa. – Gostava mesmo.
Ele não falou nada.
– E você... – a voz da mãe morreu. Obviamente, “parece bom” não era suficiente para convencê-la como ele queria.
E talvez realmente gostasse...
Na verdade, tudo fazia parte do que era esperado. Este lugar poderia ser o pior de todos, ou, dependendo da maneira como se pensasse a respeito, o melhor de todos... Só que Ollyver Jonnes não desconfiava de verdades, apenas de mentiras. E aquele lugar era exatamente o que seus sentidos lhe mostravam: uma casa de madeira em formato esquisito, onde o ar cheirava familiar e cruel; rodeada por uma floresta enevoada – uma névoa incomum... Nada mais que o esperado. Como as coisas deviam ser. Nada mais que a simples verdade. Sempre.
Encolheu ligeiramente os ombros, mas não se virou para fita-la.
– A senhora vem-me falar coisas que não importam? – indagou, com franqueza. – Não devo me lembrar de coisa alguma. Desculpe.
Kathelina piscou, depois sorriu:
– Não se desculpe por isso, Olly. Estou sendo um pouco rude..., eu sei.
– Não mais do que eu.
– Não mais do que o esperado.
O menino deu de ombros, mas Kathelina reconheceu uma covinha familiar na face lateral do filho.
– É. Talvez.
– Mas é um pouco frio também – comentou a mãe. – Por que não entramos, agora?
Seu filho meneou a cabeça, e Kathelina, conhecendo-o bem, marchou penosamente em retorno a casa, sozinha; voltando a se transformar numa mera sombra.

Aquele vinha sendo um bom primeiro dia. Tudo como esperado. Um lugar isolado e silencioso. Vivo, ao que parecia. Muito diferente da antiga casa, onde o barulho e a gritaria da rua estavam impregnados nas paredes de tijolo e argamassa, como vermes na carne podre. Claro que não foi uma escolha espontânea... Só que o sustento da família provia da venda dos livros do Sr. Jonnes – sete livros –, que não vendiam lá essas coisas... E a partir daí tudo se tornou muito simples: uma casa no meio da floresta, ou um abrigo público – a escolha foi unânime.
O ar rarefeito pela névoa o impossibilitava de ver os troncos das árvores, mas quando olhava para cima, para o topo, via os galhos verdes e rígidos pelo frio da manhã. Havia vento. Um vento que cortava de leve em seu rosto e lhe queimava os olhos claros.
Na mão direita segurava uma das obras do pai: Diário de Drägya – por Tumbi Thompson, o Desafortunado; estava escrito na capa de couro cinzento, seguido pelo nome do autor/compilador: Thomas Jonnes Verg, em letras negras com contornos dourados. Não havia desenhos, apenas letras que formavam nomes.
Decidiu levantar e seguir os passos da mãe. A névoa lhe resumia a visão a quatro ou cinco metros de raio, mas a silhueta da casa que agora era seu lar surgiu logo, num rompante surdo e imóvel.
Um click-clac anunciou sua entrada.
– A mãe pensou que você tivesse se perdido – informou uma voz às suas costas, enquanto ele fechava a porta.
– As pessoas estão sempre pensando em coisas absurdas.
– Não me venha com essa... Pergunta pra ela, então!
– Por quê? Qual a razão?
– Na verdade, nenhuma – admitiu a voz.
– Deixemos isso para lá, então?
– Pode ser.
Ao se virar, Susye Mahaffie Jonnes sorria para ele. Sua irmã. Dezesseis anos, dois há mais que ele. Tão parecida com a mãe que às vezes até Ollyver se confundia... Desde que ela não falasse, pois a voz era sempre mais aguda. Usava um longo vestido verde, com ricos desenhos de listras prateadas – o que lhe conferia o aspecto de uma cobra. Seu cabelo era negro e ondulado, como o da mãe, e tinha um rosto pequeno e pálido.
“Quem impedirá que todos nós morramos?”, continuou o jovem Tumbi. O murmurar dos mortos enfestava o ar como uma praga.
– O que está assistindo, aí? – perguntou Ollyver.
– Vai começar: “As Aventuras do Sapinho de Bigodes” – respondeu sua irmã, ainda sorrindo. – Não quer assistir comigo, irmãozinho?
Ele balançou a cabeça:
– Não assisto essas coisas.
– Eu sei... – Susye pensou um pouco. – Que tal fazermos um jogo de capítulos com um daqueles livros velhos lá em cima? – sugeriu esperançosa. – Parece que tem alguns de fantasia e mistério!
“Claro que têm”, pensou o menino.
O jogo consistia em intercalar a leitura dos capítulos, e após ler todo o livro, contar para o outro o que acontecera nos capítulos que leu. Ollyver considerou a sugestão por um momento, tentado a aceitar a proposta para o jogo, mas então falou, com ar displicente:
– Tenho outras coisas a fazer.
– Têm mesmo? – indagou a garota, olhando-o com um sorriso esperto. – Isso envolve sair entrando numa floresta de loucos sem mais nem menos?
Ollyver assumiu seu melhor ar misterioso:
– Desista. É algo que você não entenderia – provocou-a. – Um segredo para levar ao túmulo.
Susye mordeu o lábio inferior, alargando as pupilas de chocolate que herdara da mãe.
– Ao túmulo de quem? – inquiriu, cautelosa. – Não me venha com loucuras, que não sou louca como você, irmãozinho.
Ollyver teve uma ideia:
– Está bem. Desisto. Eu lhe direi – decidiu-se de repente. – Vou mesmo à Floresta, que como você pensa: é o lar dos loucos – mirou bem em seus olhos. – É um bom lugar para duelar, não acha?
Susye captou o tom de sincera ameaça e franziu o cenho para o irmão, fazendo uma expressão de dor que não convenceu muito:
– Pensa que quero outro destes? – perguntou rigidamente, massageando a têmpora esquerda. Um raso galo branco-roxeado havia aparecido onde Ollyver distraidamente a acertara com um golpe da espada de madeira.
O menino encolheu os ombros.
– Não tive culpa – alegou, sem o menor esforço de soar com sinceridade. – Você não ganha uma. Talvez na próxima, quem sabe?
– Eu não sei e não quero saber – revidou Susye, arisca. – Saia daqui ou arranjo uma espada de verdade e lhe corto ao meio, grilo-que-não-sorrir...
O grilo realmente não sorriu, mas saltou em afastamento, pensando em como seria bom ter uma espada de verdade. O treino seria bem mais empolgante, imaginava.
O corredor era estreito, cheio de um ar mórbido, e entupido de velhos móveis em tons de vinho e amarelo-queimado, manchados pela velhice da boa madeira. Alguns quadros presos às paredes mostravam pinturas à mão de fantásticas paisagens, campos verdes e florestas, castelos e suas altas muralhas de pedra-negra, salpicadas de musgo verde-escuro; cavaleiros em suas armaduras brilhantes de ouro, prata e bronze, sob ricos estandartes de suas Casas e Senhores. Não achava aquilo nada estranho. Seu pai escrevia sobre grandes batalhas medievais, guerreiros lendários, reis e rainhas, dragões, fogo e... Morte. A morte estava em todos os lugares: nas belas cidades e nos castelos, no lamento da viúva e nas florestas escuras e sombrias, onde os homens não ousavam entrar.
Sob seus pés, o piso emadeirado rangia e estalava como as costas de uma velha. A cozinha era pequena e cheirava a árvore e mofo, como toda a casa. Sua mãe preparava a mesa do café da manhã.
Ela ergueu os olhos.
– Uma conversa interessante com a Susye?
Ollyver suspirou involuntariamente.
– Tão interessante quanto morrer de tédio no País das Maravilhas – admitiu, sentando à mesa.
Sua mãe sorriu.
– Conhecendo-o como me atrevo a conhecê-lo, acho que isso não seria muito provável... – ponderou com delicadeza. – Não seja tão duro com ela, Olly.
– Vou tentar na próxima.
– Vai mesmo?
O menino encolheu os ombros magros. Ela tornou a rir.
– Ótimo!
Alguns instantes depois Susye veio unir-se a eles, embora o mais longe possível do irmão, e o café foi servido, acompanhado por pudim de pão, torradas, ovos mexidos, pão salgado e leite.

Havia, há tanto tempo quanto Ollyver podia se lembrar, uma regra de ferro que proibia conversas à mesa durante as refeições, mas pareceu que sua irmã deixou-se esquecer dela – coisas que aconteciam no primeiro dia em uma nova casa.
– Mãe, a senhora sabia que o Olly está louco? De verdade?
Kathelina ergueu os olhos de seu prato e fitou a filha, com um olhar cuidadoso:
– Louco...? De verdade?
– Quer entrar na floresta aí fora!
O canto da boca do menino repuxou-se num quase sorriso – para si mesmo.
– Não se preocupe, ele sabe se cuidar – a mãe suspirou.
“A névoa deve estar afetando suas memórias...”, Ollyver deduziu. “A névoa... fria e pegajosa.”
– Não estou preocupada – assegurou Susye. Todos sabiam que ela estava. – Não ouviu falar do velho que mora aqui perto?
– Ouvi – assentiu Kathelina, com sutil paciência. – O velho Bruck mora um pouco mais para dentro da floresta; é o Guarda-Florestal da região, se não me engano... Também há sua neta, Mirana Jovana não sei quê mais... Ô nome difícil! Eles virão nos visitar amanhã cedo.
Susye engasgou com sua torrada e soltou um guincho:
– O quê?!
– Amanhã cedo, Susye.
– Mas dizem que ele é...
– Amanhã cedo.
– E sua neta Lajota...
– Amanhã.
– Mas dizem...
– Tantas coisas que não são verdade... – Ollyver completou, brandamente. A regra já estava partida, mesmo. – Não seria engraçado se apenas os loucos falassem sem mentir?
– Não se intrometa! – sibilou Susye para ele. Nessa hora pareceu mesmo uma cobra. – Você que é o louco aqui. E também um mentiroso – acusou-o, apontando um dedo para a testa. – Disse que não valia golpes no rosto, e olhe só a minha cara!
Ollyver segurou o olhar furioso da irmã, descontraído. “Não seja tão duro com ela...”, sussurrou-lhe a voz da mãe em sua mente, ao mesmo tempo em que ela própria ria discretamente da situação.
– Você está... certa – disse para a irmã. – Desculpe. Eu escorreguei.
– É claro que estou certa – retrucou Susye ainda. – E como pôde escorregar se não havia lama nenhuma? Mentiroso!
– São coisas que acontecem – defendeu-se Ollyver, ignorando o resto dos protestos da garota, enquanto mordia o seu pão salgado e bebia seu café amargo.
Quando acabou, afinal, seu café da manhã, Ollyver esgueirou-se pelos degraus da escada que cruzava o corredor a meio vertical, deixando o livro de Tumbi sobre a mesa do café. A escada o levou até seu quarto no sótão, onde ele abrira e trancara a porta dourada no topo da escada.

2

A Canção dos Mortos.

Os móveis de seu novo quarto pareciam ter sido fabricados sob medida: entre eles erguia-se uma baixa prateleira cheia de livros antigos e poeirentos, além de alguns velhos pergaminhos...
Estava um pouco escuro, mesmo sob a luz amarelada pendurada no teto negro, então, Ollyver abriu as duas janelas que ali havia – uma que dava uma visão para à frente da casa, e outra para o céu triste e cinza-negro. Não era um quarto tão grande quanto o anterior, na outra casa, mas era suficientemente bom e aconchegante para ele.
Olhou de relance para a extremidade da parede, sobre a janela que dava para fora, e lá estavam Tripalonga e Linguaruda, penduradas em suportes de madeira. As duas também eram de madeira, vermelhas e inflexíveis; idênticas, muito embora de tamanhos diferentes. A sua Tripalonga era uma espada de duas mãos, pesada, mas bem equilibrada; a de sua irmã era apenas de uma mão, leve e veloz como um sopro de vento frio no rosto.
“Quando crescer, Ollyver, terá uma espada do melhor aço-Morto que eu encontrar”, prometera-lhe o pai certa vez. Um milhão de anos haviam-se passado, e Ollyver já tinha crescido o suficiente para saber que jamais ganharia uma espada do pai, qualquer que fosse o aço.
Num impulso, resolveu não levar nenhuma das espadas de madeira consigo. Teria tempo para praticar depois, ele sabia. Praticaria sozinho, sob as árvores ou por entre os sussurros da névoa, que lhe seria sua inimiga, caso Susye tivesse perdido a coragem para nunca mais a encontrar.
“Ela precisa movimentar-se com mais fluidez...”, refletiu consigo mesmo. Não que ele fosse um especialista das artes espadachins. Era na concebível verdade, um aprendiz sem mestre.
Desceu as escadas e pegou o mesmo livro de antes, que era tão perigoso como qualquer espada.

Susye não se encontrava assistindo tevê na sala, e ele deduzira que sua irmã estava trancada no quarto ouvindo suas músicas ruins.
Antes que pudesse abrir a porta para sair, no entanto, ouviu a voz da mãe:
– Olly?
Ele se virou e deparou com ela no meio do corredor.
– Você vai?
– Eu vou...?
– Sim.
– Exatamente para onde?
– Para onde quiser – Kathelina sorriu-lhe jovialmente. – Para onde acha que deve ir.
O entendimento o inundou como uma enchente numa casa velha... Embora não tenha sido proposital deixar tão evidente. Si deu conta que Susye também percebera.
– Eu vou – ele falou, distraído.
Ir para a floresta, é claro. Não era esse seu pensamento desde que acordara? Para onde mais iria neste mundo?
– Ótimo – disse sua mãe. – Só não se afaste muito e tome cuidado com os lobos!
O menino franziu de leve o cenho:
– Lobos?
– Claro... Os selvagens e famintos! – ela riu, imitando um rosnado assustador. – Graaau!
– Não me assuste desse jeito, mãe – Ollyver pediu, virando-se para sair...
– Vista um agasalho, sim?
O menino custou a se virar para ela.
– Não precisa. Não vou demorar e ficarei por perto.
A mãe suspirou.
– Está bem, Garoto de Pedra!
Finalmente, Ollyver saiu... Tendo em mente não morrer no primeiro dia de uma antiga vida.
Coisas que acontecem...

A névoa matinal ria e brincava com o vento, como uma criança abobalhada, deformando a silhueta das árvores. Por todo lado, correntes de ar travavam uma batalha a sangue muito frio, entre si:
– “Em nome do Rei Ventinho!” – bradou um guerreiro que ia para o Norte.
– “Pela Terrível Rainha Ventania Perpétua!” – responderam os que sopravam furacões para Sudeste.
Um tremor percorreu seu corpo magro. Era A Grande Guerra Dos Ventos – um dos livros escritos por seu pai.
No céu, o sol se escondia por detrás da mancha de nuvens negras. Parecia um tempo comum naquela região, e chuva poderia cair a qualquer momento, tornando o dia ainda mais escuro e os Guerreiros-das-Quatro-Direções demasiados frios e ruidosos.
Ollyver desceu a pequena escada junto ao batente e seguiu para a Floresta Nevoenta. Alcançou facilmente as estranhas árvores e prosseguiu por um caminho estreito, que era coberto por uma folhagem úmida e pinhões cor-de-sangue – às altas árvores não se distanciavam muito umas das outras.
Por mais de uma vez, alguns pássaros voaram por perto dele, saídos da névoa sussurrante que o acompanhava; rápidos como flechas e tão perto, que se Ollyver tivesse um excelente reflexo: poderia os pegar com as mãos. Um até fingiu que pousaria em seu cabelo escuro, que lhe cobria as orelhas e lhe caia nos olhos. Ele era um estranho ali, embora tudo lhe parecesse muito familiar.
Caminhou distraído por algum tempo, procurando um lugar onde sentar-se em paz e continuar a leitura do livro onde havia parado. Um plano simples e engenhoso. Após caminhar outro tanto, encontrou um lugar ao pé do tronco de uma árvore, onde um madeiro velho há muito criava nova vida. As raízes enterravam-se sob o chão úmido, e a superfície do toco cortado às severas machadadas estava enfeitado com pequenas florzinhas brancas que brotavam de ramos verdes.
Ollyver sentou-se no madeiro, amassando as florzinhas brancas, com as costas apoiadas na árvore. Abriu o livro onde o marcador indicava e começou a ler a primeira página do capítulo:

“As correntes-Negras”.

“A demasiada possibilidade de ir parar nas correntes-Negras fazia seu estômago pesar como se tivesse comido pedras ao invés de pão preto e bolorento. Mesmo com a multidão de miseráveis gritando e berrando alto, clamando por morte, a sua morte, ele conseguia ouvir sua respiração lenta e as fracas batidas de seu coração: despedaçado pelos horrores inimagináveis que presenciara naquele inferno, ao qual chamavam: Drägya.
 A cidade estendia-se sobre uma longa planície por trás da queda-de-Mortte, a Ruína-da-árvore – uma montanha inóspita no Continente Feër onde outrora vivera Os Cinco Irmãos de Fogo – Dragões. Agora em Feër restava apenas Drägya e casa-Forte, fornecedora de metais grossos e aço-de-Dragão para vila-Ferro, a morada-dos-Ferreiros, em Lusmmia.
Os mortos o elevaram com suas mãos frias e enegrecidas, depositando-o no estrado de pedra crua; ao seu lado, Ryvald Das mãos-Moles gemia e soluçava... O rapaz jurara ser inocente de seus crimes... No entanto, os crimes eram seus.
Tumbi Thompson, o maior desgraçado que já vivera ou viverá algum dia em Lusmmia, ergueu a cabeça e fitou as criaturas que iniciavam a dança-do-Destino à volta dos outros tantos inocentes.
“Meu destino...”, lamentou-se Tumbi, perdido, “É a morte. Oh, eles terão o que desejam... Eles beberão meu sangue!”
Tentou ver seus rostos, repugnado por vil curiosidade, mas os capuzes só revelavam a escuridão de suas faces enquanto pulavam num pé só e entoavam a lúgubre canção em vozes ululantes, espalhando seu fétido cheiro ao redor.
Eram mortos...? Estavam mesmo mortos?

Os servos levantam-se e erguem seus crânios;
Os homens em suas armaduras reluzentes;
O ferro queima suas faces;
O ouro derrete em seus corpos sangrentos;
Castelos caem e seus mortos se tornam fantasmas...  
Os servos erguem-se e cantam ao Medo Que Não Morre!

Uma vez, quando a sorte lhe sorria com dentes mais brancos, e talvez tenha sido há mil anos, ouviu na Estalagem do Touro, nas cinco vezes maldito reino-Nulo, da boca de um dos bêbados, que os Procuradores eram demônios invocados pelo próprio Medo...
...o Medo que diziam não morrer.
Tumbi Thompson tinha um bom bocado de palavras para dizer a respeito dist...
O tinir lamuriante do metal negro trouxe-lhe de volta ao desespero e dissolveu qualquer esperança que guardava em seu peito devastado. Ele havia sido o escolhido.
“Quem impedirá?”, repetiu para si mesmo, enquanto os Procuradores laçavam seu pescoço com um colar frio e subiam suas vozes aos céus de podridão:

“A lâmina cortará a carne,
Os corvos comerão a carne,
Os ossos apodrecerão,
A Morte virá mais tarde... ”

– É o meu sangue… – chorou, as lágrimas brotando de seus olhos de obsidiana. – O sangue de meu pai…
Ergueu a visão das páginas amareladas.
A terra dançava sob seus pés.

  3

Lagostas Dançantes.

T
Tum, tum, tum...
Ollyver se levantou bruscamente. Um chiado rápido de folhas e arbustos chacoalhando veio nadando no ar rarefeito... O vento rufou e rugiu, fazendo a névoa suar fria em redemoinhos branco-cinza-alaranjados.
Esperou.
Sua visão embaçava-se com a confusão de névoa e vento, que fustigavam seu rosto; assim como sua mente era entorpecida por ela... O mundo caia e levantava a sua volta, desfigurado e anormal! Olhou para cima, para baixo e para os lados...
…Então ele a viu. Ela caminhava despreocupadamente por entre as árvores a alguns passos à sua esquerda. Uma árvore cruzou o seu caminho, e ela parou diante dela, como que a estudando. Ficou ali um bom tempo, olhando para o tronco, até levar o polegar direito à boca, morde-lo com força e em seguida pressiona-lo contra a madeira viva.
Ollyver reconheceu o gesto no ato, sentindo-se imensamente perplexo. A menina olhou em sua direção. Girou nos calcanhares e inclinou a cabeça para o lado. A névoa circulava ao redor de Ollyver como uma cortina cheia de buracos... Algumas partes eram grossas como um tapete de lã, outras rasas como uma rede de pesca. A menina desinclinou a cabeça e desapareceu de sua vista – ele deu um passo para trás!, sobressaltado. Procurou-a em todas as direções, aturdido, mas então ela já estava bem na sua frente, muito perto, observando-o com uma curiosidade infantil; os braços atrás das costas, seu corpo num balanço suave e ritmado...
Só ao vê-la de perto é que ele percebeu por que ela desaparecera de repente: usava um vestido liso, de um branco imaculado, facilmente ocultado pela névoa. Embora, no entanto, nem toda névoa do mundo explicasse o cabelo... Uma cor igual aquela podia ser vista mesmo que ela estivesse detrás de uma porta de carvalho reforçada com ferro. Era como o por do sol mais limpo de nuvens e vivo que já vira. Ela lhe pareceu muito bonita, agora que pôde vê-la bem. Um rosto redondo de prato com macarrão em molho de tomate e umas rodelas de pepino verde-acebolado no meio. O pepino-acebolado eram os olhos, e eram olhos terríveis: verdes muito escuros e quase sem brilho algum – olhos mortos com pupilas largamente dilatadas. Eles, os olhos, o encaravam a meros centímetros e se estreitaram vigorosamente, examinando-o agora com atenção penetrante. Para Ollyver foi como mergulhar diretamente num céu solidamente verde-escuro, com as bordas em chamas-vivas e o medo como deus.
Emanava frio a cada piscadela.
A menina deu um passo muito curto à frente, com uma careta lhe desenhando o rosto, e tornou a inclinar a cabeça:
– Você está morto?
A pergunta fez Ollyver recuar...
– Ei! Você morreu?
– O-o quê?
A menina arregalou os olhos... A sensação de frio insinuou-se pelo corpo de Ollyver, como erva daninha numa árvore podre...
– Eu pensei que você estivesse morto… – prosseguiu ela, quase para si mesma, franzindo a testa.
– Você pensou...?
Houve um leve toque de sarcasmo.
. – Devia estar… Não é? Eu não acreditava em zumbis...
A menina fez outra careta, e duas lagostas dançaram em sua testa... Depois se transformaram em agitadas sobrancelhas. Em seguida, ela ergueu vagarosamente o queixo, e sua visão concentrou-se num pequeno pedaço de céu enegrecido que aparecia entre os galhos das árvores.
Suspirou e depois bufou como uma criança irritadiça.
– Por que ele nos olha tão descaradamente? – indagou, ainda olhando para cima.
– Do que está falando...? – perguntou Ollyver, procurando algo no céu. Um pássaro ou um esquilo numa árvore, talvez?
– Do magnífico e glorioso céu! – respondeu a menina, com desdém. Ficou então na ponta dos pés, como se quisesse bater com a cabeça no céu. – Intocável. Parque de passarinhos e caminho de vento.
Tornou a suspirar e mudou o peso do corpo de um pé para outro, de um pé para outro.
– O que isso... Significa? – Ollyver quis saber, incerto; observando em seguida: – O homem já foi à lua...
A menina olhou-o com curiosidade e divertimento.
– Já foi? Que coisa maravilhosa! – disse ela. – Você não é muito alegre, não é?
Ollyver fez uma pausa, pego de surpresa pela pergunta.
– O quê?
– Não seja tolo – pediu a menina, calmamente. – Responda.
– O quê?
– Você não é muito alegre, não é? É uma pergunta demasiado simples.
Mais uma pausa.
– É da sua conta?
– Já lhe pedir para não ser tolo. Isso é uma das coisas mais execráveis que se pode imaginar: ser tolo por escolha própria.
– Sou o bastante – resolveu ele.
– O quê?
– Alegre. É uma resposta muito simples.
– É uma resposta mentirosa – revidou a menina. – Mas eu não o culpo. Então, para quem?
– Para mim mesmo.
– Ah. Agora estamos no rumo certo: uma boa coisa – disse ela, tornando a olhar para o céu com uma expressão vazia e ao mesmo tempo serena. – Para mim é sempre Inverno... Mesmo no Verão. Mesmo na Primavera. Mesmo no Outono. E, naturalmente, mesmo no Inverno...
A menina franziu a testa.
 “A floresta é o lar dos loucos”, Ollyver lembrou. Deduziu que nunca estivera tão certo em toda sua brevemente longa existência – não queria dar crédito a sua irmã Susye. Ali estava uma louca, bem na sua frente, olhando para o céu...
– O que quer dizer com todo esse drama?
– Drama...? – ela olhou para ele. – Ora, ora, estamos mesmo progredindo! – disse, satisfeita. – Mas é óbvio que você me entendeu muito bem – ela tornou a suspirar, enquanto remexia as folhas mortas no chão com a ponta de um dos pés calçado com um tênis amarelo-mostarda. – Muitos morrem e tem de continuar vivendo. Sim, um encantador abatedouro... Caramba!
Fez-se um breve silêncio.
– Você ainda não acreditava em zumbis? – Ollyver sentiu um gosto amargo na boca ao dizer isso. – Aí estão eles.
– Aqui estamos nós – corrigiu-o a menina. – Ah, se for sincero consigo mesmo.
Lançou-lhe um olhar sutil.
Então o vento rugiu e as narinas de Ollyver arderam com o cheiro de folhas verdes e negras, pinhões-de-sangue, casca de árvore e… outro cheiro. Um cheiro esquisito que lembrava algo viscoso e denso... Um cheiro que emanava da menina.
– O que há com seus braços? – perguntou a ela, dando conta de que a menina não os tirara das costas nenhuma vez; talvez por isso tenha tentado dar uma cabeçada no céu, quando seria natural pega-lo com as mãos.
Ela contorceu-os para o lado e ele viu algo errado: a menina estava presa.
– Pode-me libertar dos meus demônios? Estou presa. Veja só isto.
Tornou a mostrar-lhe os pulsos envoltos em cordas de cânhamo negro.
– Quem... Quem amarrou você? – perguntou Ollyver, sem saber o que pensar direito.
– Ora, os meus demônios. Quem mais?
– Não estou...
– Também não estou brincando. Falo muito sério, caramba! – ela interrompeu-o, com um olhar desafiador e cheio de sombras.
Ollyver não disse nada. A menina sorriu.
– Não me olhe com essa cara – pediu ela. – Não sou tão burra a ponto de não perceber o quanto essa conversa de demônios soa ridícula e inverossímil. Mas é verdade: foram os meus próprios demônios.
O menino ficou um pouco mais ereto, mas a voz não soou rígida:
– Quem?
Dessa vez ela pensou por um momento, com um risinho brincando nos lábios rosados.
– Eu mesma.
Uma ruga inquiridora se formou na testa de Ollyver.
– Por quê? Sua mentirosa.
O sorriso dela se alargou.
– Foi um trágico acidente. Não planejado de forma alguma... Inevitável – disse a menina. Olhou fixamente para Ollyver por um momento, parecendo de repente meio confusa. Então endireitou o corpo, numa postura severa, e prosseguiu: – Você pode-me ajudar, ou teremos outra entrevista a respeito?
Ollyver recuou:
– Eu só fiz uma pergunta. Não precisa falar desse jeito.
– Não seja hipócrita! – disse ela, em súbita voz alta. – E a pergunta que não era da minha conta?
– Continua não sendo hoje, nem amanhã e nem nunca – disse Ollyver, resoluto. Então percebeu que estava agindo como uma criança teimosa; que aquilo não era realmente importante, e ante ao rubor de vergonha apoderando-se de suas faces, acrescentou: – Mas se quer saber, mesmo: sou tão alegre quanto um cego bêbado no meio de uma multidão de torcedores de futebol em dia de clássico.
Era um exagero deliberado. A menina apenas sorriu-lhe um sorriso triste.
– Então você precisa me desculpar por isso – falou, por fim. – Às vezes sou apenas um pedaço de carne um pouco mais salgada que o resto, você sabe: neste encantador abatedouro onde vivemos – e emendou: – Ah, mas é só de vez em quando. Ou seja, nem sempre.
– Sei tanto sobre isso quanto um guaxinim – retrucou Ollyver, tentando não soar tão rude quanto seu tom valia. Já havia notado que aquela menina ia continuar falando maluquices até de manhã, e não queria irritar-se por causa disso.
– Está insinuando que guaxinins são burros? – perguntou ela. – Eu acho que há alguma lei contra esse tipo de pensamento...
– Deixe isso para lá.
– Caramba. Eu deixo.
Fitou-a longamente, com uma curiosidade incisiva.
– Um pedaço de carne… Você disse? – achou essa uma coisa estranho para se falar de si mesmo.
– Sim. Mas não estou à venda.
– Não falei... que estava.
– Não falou – concordou ela. – Vai-me ajudar? Continuo presa!
– Não.
A menina ficou rígida e lançou-lhe um olhar estranho:
– Por que não? Seria bom da sua parte.
– É. Por que não? – repetiu Ollyver, como se a menina, além de louca, fosse também idiota. – Acha que eu sou bom? Olhe outra vez com mais atenção... Você vai mudar de ideia assim que compreender. Assim que ver a verdade... – por alguma razão desconhecida, ele sempre quisera dizer isto. No entanto era exagerado, ele sabia. – Também não sou bom com cordas... Você vê? Eu ainda nem me enforquei.
A gargalhada dela espalhou-se entre as árvores, viva, súbita e doce. Como o cheiro e a textura de um livro encapado em couro suave e limpo... Leve e poderosa como a canção-de-Sangue cantada em meio a fria e constante Grande Guerra dos Ventos. Penetrou no corpo de Ollyver com o efeito de um choque elétrico.
– Você... é... Engraçado. Caramba!
Ele permaneceu em silêncio, absorvendo-a, paralisado por sua doçura... Quando falou, tentava ainda alcançar o último sussurro brincalhão de seus lábios:
– Sou engraçado o suficiente – disse.
A menina mudou o peso do corpo para o pé esquerdo, como numa dança, depois desdobrou o corpo com desenvoltura:
– Para não se enforcar – disse ela.
– É. Para não me enforcar.
Uma mudança, decididamente. Algo que não fora esperado. Uma menina, duas lagostas dançantes. Uma risada que transportava sonhos luminosos, ladeada por lagoas de morte e desespero... Isso era tudo. Ou era tudo que se podia entender, quando não se conhecia causas nem razões específicas para extremos tão naturalmente opostos...
Ollyver desatou o nó de sua garganta, assim como o nó da corda que a prendia pelos pulsos, tomando o máximo de cuidado para não encostar-se no pequeno corte no polegar direito dela, resultante do gesto de respeito e devoção à vida – o Bardaê. O último nó não dera muito trabalho, mas imaginou que seria difícil para a menina desatar sozinha.
“O Bardaê...”, repetiu para si mesmo, ainda um pouco atônito. “O Bardaê-de-sangue.”
Então, ela também lera os livros – os livros escritos por seu pai.
– Agradecida – disse a menina, aliviada. Seus pulsos mostravam nítidas marcas provocadas pela corda negra. – O que fez você mudar de ideia tão repentinamente? É tão estranho...
O menino simplesmente deu de ombros:
– Não ter ideia nenhuma.
– Ideia nenhuma sobre o quê?
– Sobre se eu tenho muita sorte ou muito azar. Sobre se isso importa ou não.
– Acho que eu poderia ter um pouco de sorte, se quisesse... Mas só um pouquinho. E é outra coisa boa, pois importa muito – sorriu-lhe a menina. – Não pensei que não poderia desfazer um nó que meus próprios demônios fizeram... Mais uma pena, como pode ver: também não sou muito boa com cordas – tornou a rir.
Ollyver tentou rir junto com ela. Não dera muito certo porque, além de não achar muitas coisas engraçadas, agora estava si perguntando por que diabos ela amarrou os próprios pulsos? E também…
– Espere um pouco – começou ele, devagar. – Como foi que você amarrou suas mãos tão depressa, se antes, quando fez o gesto para a árvore... O Bardaê-de-sangue, elas não estavam presas?
– Não fui eu! – a menina afirmou, com veemência.
– Você disse que foi você mesma...
– Você disse que eu era uma mentirosa – replicou ela. – Foram meus próprios demônios!
Ollyver ficou em silêncio por um momento. Não acreditou nela.
– Então seus demônios são habilidosos...
Ela fez que sim, resoluta.
– Por que está me perguntando isso? – indagou. – Foi um acidente. Demônios podem ser um pouco desastrados, você sabe.
– Sei… – disse ele. – Por nada em especial.
– Curiosidade?
– Curiosidade.
A menina sorriu.
– Certo. Então é aquela coisa de dizermos o nome um para o outro – ela recomeçou, em um tom mortalmente indiferente. – Se apresentar.
Ollyver não sabia, mas tinha uma suspeita sobre quem ela era... Quem mais poderia ser?
Mas a menina fez algo que desviou seus pensamentos de suposições inúteis: firmou os dois pés com força no chão, ficando só o seu longo vestido branco a dançar com o vento gélido, misturando-se à estranha névoa que o dito vento trazia. Pareceu-lhe uma sombria pintura de traços insanos e desprovidos de rudeza.
– Eu sou a Sombra do Fogo, Nyrie Jollana Jordan, treze anos; filha de Lukes Jordan e Anna Jollana Delle... – apresentou-se com naturalidade. – Tenho uma irmã chamada Kanirie, que também se chama Jollana Delle, igual à Anna. Prazer. Quantos anos têm?
– Catorze… – respondeu o outro, perguntando-se quanto de loucura havia nas palavras dela. Mais de um quilo, provavelmente. – Sombra... do fogo?
"Pelo menos não se chama: Lajota..."
– E Descendente de Escoceses – completou Nyrie Jordan. – Algum problema com isso?
– Problema? Nenhum.
A menina sorriu-lhe, divertida.
– Ah. Eu notei, com certo interesse, que você está preocupado se eu sou uma louca – observou ela. – O fato é que eu não sou por assim dizer: uma genuína psicopata! Então... É possível viver plenamente a morte, desde que não seja uma morte inesperada, sabe: Puf! Você espera pela morte?
Ollyver ignorou o comentário sem sentido e a pergunta.
– Mas ainda é louca, certo?
– Ora, quem neste bendito Mundo sabe? – perguntou-lhe a menina, com certa sinceridade. Ou nenhuma. – Talvez você venha a descobrir mais tarde. Não é?
– Sim. Mas acho que já é tarde de mais.
Nyrie Jordan sorriu e em seguida seu sorriso desapareceu e ela disse:
– Talvez eu seja mesmo, e acho até bom: há uma loucurazinha mortífera guardada em todo coração, sabe? Há de se encontrar respostas bem no fundo…
– Não sei de nada e estou no raso – disse Ollyver, sem levar a sério àquela disparatada toda.
– Você não sabe? Ora, é onde todos se afogam!
– Muitas pessoas morrem afogadas em bacias, é verdade.
– Bacias? Que bacias? É no coração. No meu, e no seu. No de todo mundo. Menos no coração desta maravilhosa névoa que nos rodeia: ela é fria e sorrateira! Tenha cuidado com ela, pois ouvi dizer que ela gosta de meninos sérios que não são bons com cordas...
Ollyver mirou-lhe um olhar de esguelha:
– Engraçado. Vou rir daqui a pouco.
– Quando isso acontecer irei lhe acender uma vela e chorarei demasiado – ela prometeu. – Qual nome deve ser esculpido na lápide de mármore negra?
– Jorver Jarves – disse, sem saber de onde tirara um nome tão estúpido.
Nyrie caiu outra vez na gargalhada.  A sensação que percorreu o corpo de Ollyver o deixou num estado pleno. Como se andasse sobre uma corda bamba com total equilíbrio. O sorriso desenhou-se em seu rosto como a arte mais fina. Maravilhosa! Como… Simples felicidade. Como encontrar uma coisa que ele havia perdido há mil anos… Uma coisa que ele desejava com o puro querer do coração.
A menina tomou fôlego, enxugando as lágrimas do riso. Olhou para Ollyver e estacou, e sombras agitaram-se em seus olhos arregalados. Por um momento, o menino imaginou que ela estivesse sofrendo um tipo de ataque fulminante, e correu para ela, o sorriso desmanchando-se em seu rosto como cinzas sopradas pelo vento...
– V-você está bem? – perguntou, segurando-a pelos ombros. Quando ela não respondeu palavra, agitou-a como se ela fosse uma boneca-de-pano-em-chamas. – Você está bem? Fale comigo!
A ferocidade em seu tom fez Nyrie estremecer toda; depois ela balançou a cabeça de um lado para o outro, tentando desanuviá-la. Fitou os braços de Ollyver que a seguravam e pareceu voltar à realidade.
– Estou… – murmurou, com uma careta. – Claro que estou. Por que está perguntando isso? Me solte! – deu um solavanco tão grande que Ollyver foi forçado a soltá-la, muitíssimo espantado. – Oh… – ela arquejou, o rubor espalhando-se por seu rosto naturalmente rosado. – Desculpe-me… Eu não queria. Eu… Quem é você?
A pergunta fez Ollyver dar um passo atrás, assustado.
– Como… Como assim?
Nyrie piscou os olhos e o sorriso cruzou seu rosto, o desfigurando.
– Jorver Jarves é um bom nome – disse ela, a voz tão natural que doía. – Mas… Tem certeza disso?
“Ela sabe”, Ollyver disse a si mesmo, antes de perceber que o mundo era uma mancha disforme em tons de cinza-esverdeado, vermelho e negro. Sentiu ânsia no estômago e quase vomitou em cima dela. Um longo momento passou antes que ele voltasse a respirar direito... Outro tanto se passou antes de conseguir falar:
– O que diabos você está querendo?! – gritou na cara dela. – Por que está fazendo isso…? Não estou entendendo nada!
Ele se arrependera no mesmo instante de ter gritado. Mas seu arrependimento não impediu que as lágrimas brotassem dos olhos mortos dela como veios de um rio. Sentiu uma pesada pressão no peito e teve medo de que ele próprio estivesse tendo um ataque...
Nyrie Jordan deixou-se cair no chão bem de leve, como se fosse uma folha que o vento desprendera dos galhos de uma árvore qualquer, ou um pingente solitário de neve pronto a derreter com a mais ínfima mudança de temperatura. Franziu o sobrolho para um galhinho próximo e começou a brincar com ele, murmurando alguma coisa para si mesma.
Pareceu infantil. Parecia uma criança.
Ollyver ficou ali, tendo um quase “ataquezinho” em silêncio. Era tudo o que ele podia fazer... O tempo fez o que faz de melhor: passou. Lento e desprendido de qualquer sentimento. O que importava para ele se as coisas envelheciam e morriam? Era natural. É sempre natural. Isto não é de certa forma, terrível?
Ah, as palavras que respondem de maneira bem elaborada! Pode ficar quietinho aí. Pode mesmo. Ele só quer passar em paz e sossego...
O tempo.

Ollyver não morreu de um ataque fulminante. E ainda bem que não: a mãe ia ficar muito triste, como já ficara uma vez, e Susye podia ficar brava e não querer ser sua irmã mais velha. A pressão no peito foi amaciando aos pouquinhos, e a cor retornando ao seu rosto conforme o tempo passava de mansinho...
– Como se chama alguém que está perdido?
– Chama-se pelo nome, imagino...
O graveto havia se partido ao meio num estalido agudo, e a menina se erguera.
– Oh, então assim fica mais fácil para você – disse Nyrie Jordan. – Podemos começar tudo outra vez? Não do início. Eu não estou mais sozinha na floresta, sabe?
– Sei – concordou ele. – Eu também estou aqui. Sim, podemos começar de novo...
Ela olhou para ele com um risinho franco:
– Quem é você?
 
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