Inverso



Karen Alvares
Inverso


Capítulo Um – Mudança

Megan não queria realmente se mudar, mas também não queria magoar o pai.
As paredes nuas e muito brancas do apartamento davam uma sensação desconfortável de vazio e silêncio. Não era culpa do lugar em si, já que Megan sentira a mesma coisa em todos os outros imóveis que visitara com o pai e a irmã. O apartamento novo não tinha nada de errado; na verdade, até que era bem legal. Ele só não tinha a sinfonia de um lar.
Os barulhos, os cheiros, as lembranças.
Tudo era novo. E branco.
Mas essa sinfonia, como Megan gostava de pensar, também deixara sua casa. O outro apartamento ainda era um lar, mas não era o mesmo e jamais seria.
Isso fora quatro anos antes.
— E então, meninas? Gostaram?
Renato olhou para as filhas — Megan, a mais velha, e a pequena Minako, ou Mina, como todo mundo a chamava —, com uma ansiedade evidente nos olhos escuros e cansados. Megan deixou que a irmã falasse primeiro. Estava bem claro que a felicidade de Mina era genuína, como deve ser a felicidade das crianças de sete anos.
— Eu gostei, pai! Gostei muito!
O pai sorriu, um pouco mais aliviado, mas logo voltou sua atenção para Megan, disfarçando muito mal seu nervosismo; as mãos torciam-se uma na outra e o sorriso denunciava o desconforto. A garota sabia que o pai precisava de sua aprovação. Agora ela era a mulher da família, apesar de ser apenas uma adolescente.
Megan cruzou os braços, desconfortável; era como ocupar o lugar da mãe, um lugar que não lhe pertencia. Ela só conseguia imaginar o que Marina diria nessas situações e não achava que fazia um bom trabalho na tentativa.
— E você, Megan? Gostou?
— Claro, pai – a garota disse, forçando entusiasmo na voz, mesmo com aquele remorso amargo subindo à garganta por não ser completamente honesta. Ela sabia que nenhum lugar a faria feliz de verdade, não importava se fosse esse apartamento ou qualquer outro, ou até uma casa. – Adorei.
Agora sim, seu pai parecia aliviado de verdade. Ela tinha sorte por ele não ser muito perspicaz nas nuances de sentimentos. Sua mãe logo notaria que Megan não estava sendo sincera.
— Isso é ótimo! – ele disse, com um sorriso que a garota não via desde muito tempo.
Aquilo lhe deu a sensação de ter feito a coisa certa ao não ser tão franca quanto gostaria. Ele caminhou pela sala vazia, seus sapatos fazendo barulho no piso de madeira. Megan os observou, e seus pensamentos viajaram para longe; os sapatos precisavam ser lustrados ou, melhor ainda, ele precisava de sapatos novos.
Ela sabia que o pai evitava comprar coisas para si mesmo. Era tudo para ela e Mina, especialmente agora que eram só os três. Megan teria que ela mesma comprá-los, como sua mãe faria.
— Esse lugar – o pai continuou – vai ser muito bom pra nós, vocês vão ver. Deveríamos ter feito isso há... anos... Vocês sabem... – ele hesitou. – Eu sinto muito.
— Pai, nós não tínhamos dinheiro na época – Megan se apressou em dizer. – Todas aquelas despesas que surgiram... A gente tinha um montão de contas para pagar.
— Eu sei, mas... – ele não terminou a frase. Ao invés disso, resolveu mudar de assunto. – Tem três quartos, um quarto pra cada uma de vocês!
Mina finalmente abriu a boca.
— Mas eu gosto de dormir junto com a Megan.
Ela fez um biquinho, contrariada, algo tão infantil que Megan deixou escapar uma risada.
— Mas Megan já tem quatorze anos, filhota. Tá quase fazendo quinze! Tenho certeza que ela quer um pouquinho de privacidade, não?
Mina cruzou os braços, soltando um “humpt”. Megan achava legal a ideia de um quarto só para ela, claro, mas não fazia assim tanta questão. Além disso, estava tão acostumada a dividir o quarto com Mina que não achava que faria tanta diferença. Para tentar animar a irmã, disse:
— A gente pode bater nas paredes pra falar uma com a outra. Que nem nos filmes. Tipo um código Morse de irmãs. Vai ser legal, não acha?
Mina continuou de braços cruzados, mas Megan conseguiu roubar um sorriso da menina.
Eles continuaram andando pelo apartamento, conversando sobre ideias do que fazer com as paredes (Mina queria as suas coloridas, com passarinhos e borboletas) e onde colocar os móveis. Nem todos caberiam ali, de maneira que teriam que se livrar de algumas coisas, algo que evitavam fazer havia anos. Apesar de o apartamento ser maior em número de cômodos, o quarto que pertenceria ao seu pai e a sala eram um pouco menores. Enquanto Mina estava ocupada examinando seu novo quarto e decidindo onde iriam morar seus bichinhos de pelúcia, Renato se aproximou de Megan.
— Eu posso mandar remover as telas do nosso antigo apartamento para colocar nessas janelas. Ou colocaremos novas.
— Alanis vai gostar disso – Megan respondeu, referindo-se à gata da família, que era mais de Mina do que de qualquer um deles. Ela sabia que não era exatamente isso que o pai queria dizer ou teria falado na frente de Mina, então esperou.
— Megan... Eu queria te pedir um favor, filha.
Ela observou o rosto do pai, esperando. Ele estava novamente pouco à vontade.
— Filha, eu preciso limpar as coisas da sua mãe lá do nosso antigo quarto. Evitei isso por quatro anos, mas agora não tem jeito. Sei que é um trabalho triste, mas só posso pedir a você.
Ele olhou para Mina, ainda distraída planejando seu novo quarto.
De certa maneira, Megan estava aliviada. Aquilo não era de todo um problema, apesar de ser mesmo triste. Pensava que o pai comentaria algo sobre a escola. Eles viviam reclamando sobre Megan: seu comportamento, suas roupas e sua aparência “fora do comum”, como adorava frisar a coordenadora pedagógica. Megan a apelidou mentalmente de Playmobil, porque ela tinha um cabelo loiro cortado em cuia, o que deixava sua cabeça gigantesca. Às vezes ela colocava tanto gel que dava a impressão de que não era cabelo de verdade, mas sim uma peruca: a peruca do Playmobil. Megan várias vezes se sentiu tentada a puxá-la, só pra ver se ela saía e encaixava como a do boneco. Chegou a contar o apelido para o pai, mas ele não aprovava – apesar de deixar escapar um sorriso quando a filha dizia isso; nem seu pai suportava a mulher. Quem adorava a piada era Daniel, seu melhor amigo. Ele costumava dizer que ela deveria espalhá-la, que faria sucesso na sala, mas Megan respondia que se os babacas da sua classe achassem algo que ela disse engraçado, automaticamente aquilo perderia a graça.
A escola, a família, todos achavam Megan uma desajustada que só queria chamar atenção. Mina achava divertido o jeito da irmã, principalmente seu cabelo preto com mechas roxas – na verdade, tantas mechas que pouco se via o preto. Já o pai não reclamava; Renato fazia o que podia para ser um bom pai, o que devia ser difícil (ele vivia lendo livros para pais solteiros), e dava espaço para as filhas serem o que tivessem vontade, desde que isso não as prejudicasse. Ele costumava dizer que se a tintura não penetrasse no cérebro e interferisse nas suas notas, Megan poderia continuar pintando os
cabelos da cor que quisesse, até de laranja ou verde limão. É claro que ele ouvia muito da família por isso, principalmente da vovó Helena, sua mãe. Ela gostava de dizer que Megan parecia uma “árvore de Natal” e que “viraria lésbica se Renato não desse um jeito para que fosse mais feminina”.
Megan não entendia por que raios ser homossexual poderia ser um problema, muito menos como ela poderia “ser mais feminina”. O que diabos significava isso, afinal? Trocar de brincos?!
Mas a resposta do pai sempre a fazia rir: Renato dizia que não se importaria se Megan arrumasse uma namorada, bem melhor do que um marmanjo “4 x 4” andando por aí com sua garotinha.
A verdade era que Megan gostava sim de garotos, apesar de não estar apaixonada por nenhum, mas não dizia isso à avó, obviamente. Na verdade, comentava várias vezes sobre meninas bonitas perto de Dona Helena, só para vê-la ficar vermelha de nervoso e espumar pela boca. Isso fazia Mina rir até chorar. O único problema era que seu pai ouvia um monte de bobagem depois disso.
Renato ainda observava Mina, e Megan também manteve seu olhar na irmã ao responder:
— Tudo bem, pai. Não me importo de ajudá-lo a limpar, mesmo. São as lembranças da minha mãe e quero mesmo dar uma olhada nelas, separar algumas coisas para mim, outras para Mina. Não gostaria que fizesse isso sozinho.
O pai sorriu e a abraçou. Seus olhos estavam brilhantes de lágrimas. Megan não comentou, sabia que o pai preferia escondê-las.
— Obrigado, filhota.
— Pai, mas e aquele espelho enorme que tem no quarto de vocês... quer dizer, no seu quarto? Não tem cara de que vai caber no quarto novo.
Renato tornou-se pensativo por longos instantes. Ele franzia as sobrancelhas e estreitava os olhos quando fazia isso, deixando-os ainda menores, o que lhe dava um aspecto sonolento.
— A gente pode até tentar tirar da parede, mas tenho certeza de que não vai sair. Qualquer coisa fica lá pro próximo morador do apartamento.
— Mas é um espelho bem legal, pai.
— Nós não vamos trazê-lo, Megan – o pai disse ríspido.
A garota não respondeu, surpresa com a voz subitamente dura do pai. Renato pareceu perceber, porque coçou a cabeça e ia começar a dizer algo quando Mina apareceu.
— Ei, eu quero abraço! – a menina interrompeu a conversa, abraçando as pernas do pai e da irmã. – A mamãe tá aqui com a gente também? – perguntou com doçura; chamava Renato apenas de “pai” havia muito tempo, mas ainda não tinha largado o costume de se referir à mãe falecida como “mamãe”.
— Sim – o pai respondeu convicto, novamente com o tom amável de antes. Talvez Megan apenas tivesse imaginado coisas. – Ela está.
*
— Pronto. Um pão de queijo e um chocolate quente, Cabelo de Fanta Uva.
Megan revirou os olhos e deu uma mordida no salgado enquanto Daniel se sentava à sua frente. Lá estava ele com seus dois mistinhos, um pão de batata recheado e um copão de refrigerante. Eram só dez da manhã e ele provavelmente já tinha tomado café da manhã em casa. Reforçado.
— Isso mata – Megan comentou divertida.
— O que não mata, engorda – ele disse de boca cheia.
— Você não engorda. Então mata.
— Tu fala isso todo dia.
— Mas é verdade. Refrigerante a essa hora do dia?
— Só porque você decidiu ou fez promessa ou sei lá o que de não tomar refrigerante, os outros podem continuar a gostar da bebida, oras.
— Eu tô de dieta. E ainda é de manhã!
— Não sei de onde você tirou essa regra.
— Como você não engorda?
Ele deu de ombros, terminando o primeiro mistinho com duas ou três mordidas. Enfiou um monte de refrigerante goela abaixo e disse:
— Tô em fase de crescimento.
— Não vou mais te convidar pra almoçar lá em casa. Você dá prejuízo.
De repente ele fechou a cara. Tomou mais dois goles de refrigerante e arrotou. Ele não se importava de arrotar na frente de Megan, apesar de não fazer isso na frente de qualquer outra garota. Costumava dizer que Megan era privilegiada por poder apreciar esse lado superatraente dele. Não que isso o ajudasse com as garotas: se havia algo que os dois compartilhavam era o fracasso no fantástico mundo romântico adolescente.
— Tu é uma chata. Não vou mais almoçar na sua casa porque você vai se mudar e me abandonar nesse mundo cruel.
— Dramático – ela resmungou, tomando um grande gole do chocolate. – Não vou deixar a escola, só vou me mudar. Não é grande coisa.
Na verdade era sim, e Megan pensava nisso todos os dias. Não fazia sentido, mas mudar a incomodava. Parecia que estava deixando algo para trás. Algo importante. Ela só ainda não descobrira o quê exatamente.
— Quer ajuda? – Daniel perguntou de repente.
— Ajuda no quê? Na mudança?
— Ah, também... Apesar de isso ser uma baita traição ao nosso movimento – ele resmungou. – Mas não, digo, para a... tarefa de hoje.
Megan tinha contado mais cedo para Daniel sobre a limpeza do quarto de seus pais. Ela e o pai tinham combinado de manhã cedo no carro, a caminho da escola, que fariam isso naquele dia, pois Mina tinha o curso de inglês e natação até mais tarde. Era o único dia da semana que era possível mexer no quarto sem Mina pela casa, e eles não queriam que ela ficasse triste também.
— Não, Daniel... Não precisa. É meio que... tarefa de pai e filha, sabe?
— Tudo bem, então – ele enfiou mais mistinho para dentro.
Três garotas passaram atrás dele, dando risadinhas. De deboche, Megan tinha certeza. Uma delas apontou para Megan, fez um “oh” e caiu na risada. Babaca. Daniel olhou para trás quando Megan soltou um “muuuu” longo e ligeiramente alto. Elas riram de novo quando perceberam que Daniel olhou para elas, e então Megan não sabia dizer se era de deboche ou outra coisa.
Essa era uma dúvida eterna em sua cabeça. Por um lado, Daniel era meio porco, bastante nerd, o cara mais estudioso da sala e, pior, andava com Megan, a esquisita. Por outro, ele até que era bonitinho, estava ficando muito alto (até parecia que alguém estava esticando o moleque) e costumava atrair vários olhares, principalmente fora da escola, onde não o conheciam. Então ele meio que estava no purgatório do ensino médio. Nem lá, nem cá.
Talvez Megan estivesse fracassando sozinha no fantástico mundo romântico adolescente. Grande coisa.
Ela ficava feliz que Daniel ainda andasse com ela, mesmo que Megan com certeza diminuísse sua chance com as garotas. Também era legal que ele, no fundo, não achasse isso um problema, apesar de reclamar às vezes da sua falta de sorte. Eles eram amigos desde a segunda série, e Daniel passou por todo o “Período das Trevas” junto com Megan. Como era praticamente seu vizinho (ele morava a umas duas quadras, por isso estava resmungando contra a mudança), ele também passava muito tempo em sua casa.
Daniel fora um grande amigo naquela época horrível e até olhava Mina quando Megan tinha que sair correndo com o pai por causa de alguma emergência com a mãe. Ela passava muito mais tempo no hospital naquela época do que uma criança de dez anos deveria. Quando sua mãe foi diagnosticada como terminal, alguns dos funcionários do hospital sentiam pena e deixavam que Megan ficasse por lá, às escondidas. Na maior parte das vezes, ela ficava apenas algumas horas para que seu pai pudesse ir para casa tomar banho, mudar de roupa e comer. Sua avó Helena e sua mãe não se davam nada bem; sua avó nunca perdoara a nora por não vir de uma família japonesa. Ela não movia um dedo para ajudar e ainda reclamava que o filho estava exausto. No final, Marina foi transferida para casa. Para morrer. Não havia mais nada a ser feito e morrer em casa era um desejo seu. Os arranjos foram difíceis e dolorosos, fora preciso até mesmo um advogado – um amigo do seu pai, vizinho no prédio comercial onde ele trabalhava, que o ajudou com a burocracia – mas conseguiram transferi-la. Ela se foi três dias depois disso. Megan viu quando o coração de sua mãe parou de bater e estava lá para abraçar o pai quando ele chorou em seu ombro como uma criança.
— Megan?
— Opa, foi mal – ela disse, tomando o último gole do chocolate quente. Não estava mais tão gostoso quanto no começo.
— Eu te perguntei quando você vai mudar.
— Hum... não sei ainda. Meu pai tá tratando da compra e venda e tal... – deu de ombros, tentando não dar muita importância. – Isso pode demorar, não?
Ela fez a pergunta pedindo e dando esperanças. Queria que Daniel dissesse que sim, iria demorar. Ele também parecia querer isso.
— Um tio meu comprou uma casa no ano passado. Acho que demorou. Sei lá.
— De qualquer jeito, quando eu me mudar, você vai poder me visitar. Você pode ir de bicicleta, nem é longe.
— É, eu sei. E vai ser melhor pra vocês, não é? E pra você?
Ele parecia querer uma resposta cheia de esperança, então, mais uma vez, Megan decidiu guardar para si suas dúvidas.
— Sim, vai ser. Eu acho. Vai sim.
As duas aulas depois do intervalo foram de pura e simples tortura. Biologia, com a professora mais chata da face da Terra e provavelmente uma das que mais detestavam Megan naquela escola. Parecia até um problema cármico ou algo assim. Uma vez Daniel sugeriu que Megan só podia ter assassinado a mulher em outra vida. Quando a Dona Tanajura entrou balançando seu traseiro enorme de formiga saúva na frente da sala, Megan já se encolheu na carteira, tentando se esconder atrás de Daniel. Às vezes funcionava.
Para o descontentamento da garota, a tentativa não deu certo. Dona Tanajura fez questão de fazer três perguntas para Megan na frente da sala inteira. Ela até sabia a resposta de uma ou outra, mas parecia sadicamente divertido fingir que não sabia. Aliás, não fazia muita diferença para ela como as células se reproduziam, contanto que elas
um dia morressem. O problema era quando resolviam ser rebeldes e se tornavam aberrações, insistindo em permanecer vivas. De fato, Megan realmente disse isso na frente da sala quando Dona Tanajura fez uma pergunta particularmente difícil. A sala inteira riu (ninguém gostava muito de Megan, mas gostavam menos ainda da professora). Dona Tanajura disse que Megan fora grosseira e mandou que ela fosse até a sala da coordenadora levando um bilhete seu.
— Ótimo. Ótimo. Ótimo – Megan resmungou enquanto caminhava como uma lesma até a sala da Playmobil.
Depois de muito sermão, enjoo pós-inalação excessiva de laquê, três copos d’água e um bilhete para seu pai assinar, Megan deixou o lugar. Não voltou para a sala de aula. Enfiou-se no banheiro e xingou alto porque esquecera o celular na classe. Acabou por se sentar numa privada e ficou lendo as pichações na porta, inventando histórias sobre elas e toda sorte de xingamentos para a Dona Tanajura até que deu a hora da saída. Quando deixou o banheiro, Daniel a esperava com duas mochilas nas costas, uma em cada ombro.
— Ei, valeu – ela disse, puxando sua mochila para aliviar o peso do garoto. Daniel respondeu com um resmungo e começou a andar. Megan o seguiu e cutucou-o no ombro, mas já sabia muito bem qual era o problema. – Que foi?
— Que foi? Que foi? – ele tinha aquele tom de voz justificado, como sempre ficava quando achava que estava com a razão. – Tu não voltou mais pra aula. E eu já te falei pra tomar mais cuidado com o que fala pra professora Sandra. Fica se metendo em problemas sem necessidade, poxa. E você perdeu uma ótima aula de literatura depois.
— Não aguento mais Camões. Se eu ouvir mais um verso dos Lusíadas, juro que vou vomitar.
Daniel suspirou.
— Você não pode continuar perdendo aulas, Megan. E quanto às suas notas?
— Minhas notas vão muito bem, obrigada. Eu vi um 9 de matemática e um 8,5 de português tomando cafezinho na padaria semana passada.
Daniel resmungou genuinamente irritado. As notas de Megan eram como o peso dele: não variavam. Por mais que ele comesse, continuava magricelo. Por mais que Megan bolasse aulas, continuava tirando notas boas. Na verdade, ela não estava matando aula, as aulas é que não eram suficientemente boas para ela (Daniel queria morrer quando ela soltava essa pérola, por isso mesmo Megan dizia aquilo com frequência). Tirar notas altas era a única parte legal da escola. Ela também vivia dizendo que era um gênio incompreendido, só para irritá-lo, e ele ficava realmente nervoso. Daniel estudava muito, pra valer mesmo, muito mais que qualquer garoto ou garota da sala. Ele sempre alcançava Megan ou passava dela, mas ficava irritado porque precisava de muito esforço para isso.
— Onde você deixou sua bike? – Megan perguntou, mais para puxar assunto do que outra coisa. Ela seguiria Daniel de qualquer jeito até o lugar e eles voltariam juntos para casa, como sempre faziam. Eles só não vinham juntos de manhã porque o pai de Megan gostava de levá-la depois de deixar Mina na escola.
Daniel resmungou qualquer coisa sobre umas duas quadras adiante, porque alguém tinha pichado “CDF” de novo na sua magrela. Ele era chamado de CDF desde a quarta série. Esse era outro motivo pelo qual ele não se dava bem com as garotas, parecia que elas preferiam os caras idiotas. Ser adolescente era injusto.
— De novo?! Esse povo não se cansa. Eu poderia dar uma porrada neles qualquer dia desses.
— Vai arrumar uma suspensão se fizer isso – Daniel avisou.
— Não vou não, você segura e eu bato?
Isso o fez finalmente rir. Era brincadeira, mas ele sabia muito bem que ela poderia fazer isso de verdade se ficasse irritada o suficiente. Era só ter um motivo. Megan era uma panela de pressão: trinta minutos de zoeira e começava a fumegar. Com quarenta, poderia explodir. Daniel era o pino da panela: liberava o ar quente acumulado de vez em quando.
Realmente havia uma nova pichação de CDF na bicicleta de Daniel, com tinta rosa. Que tipo de gente se dá ao trabalho de comprar tinta cor de rosa para pichar, afinal? Megan nem sabia que existia essa cor em spray. Os dois examinaram o quadro por alguns minutos até que a garota quebrou o gelo.
— Bem, poderia ser pior. Você poderia ter um carro e aí o “CDF” seria em CAPS LOCK. Quer dizer, não é muita coisa quando picham algo no quadro de uma bike, não é? É tão fino... quase ninguém vê.
— Eu tenho quinze anos, Megan, jamais poderia ter um carro. Quando eu puder, os caras não vão mais me chamar de CDF.
— É claro que não. Quando você puder ter um carro já vai ser um programador da Google e esses caras vão ficar chorando na sarjeta comendo pão com mortadela em seus empreguinhos merrecas.
— Eu gosto de pão com mortadela – Daniel disse, subindo na bike.
— Eu também. Mas nós vamos comer pão com mortadela da mais cara. Um monte de mortadela, quilos dela dentro daqueles pães com nomes esquisitos, nada de “média1” ou pão de cará2. Eles vão comer só uma fatia fininha, com gosto de cabo de guarda-chuva.
Havia um pequeno sorriso no canto dos lábios de Daniel, o que deixou Megan satisfeita.
1 Nome dado ao pão francês na cidade de Santos.
2 Espécie de pãozinho adocicado que só existe na cidade de Santos, muito consumido no café da manhã e lanche da tarde.
— Te encontro no ponto da Bike Santos?
— Ai de você se não me esperar – ela retrucou, aliviada por ele não estar mais irritado.
Cinco minutos depois, Megan o encontrou no ponto das bicicletas públicas. Havia vários pontos como aquele em Santos, distribuídos pela cidade. Daniel já estava lá, montando guarda ao lado da única fixada ao lugar, na posição doze. Havia um garoto uns dois anos mais novo observando a bicicleta com desejo, mas Daniel permanecia imperturbável.
— Isso é bullying – Megan comentou assim que chegou, mas tratou de logo apanhar o celular e discar o número da central para pedir a bike. – É exatamente o que fazem com você.
— É, mas quando você é mais velho, ganha esse direito. E eu tenho que ter uma compensação depois da minha bike pichada.
— Tá aí, outra vantagem. Com essa bike você parece bem suspeito e assusta as criancinhas.
— Você tá quase me convencendo a não pintá-la de novo.
Megan destrancou a bicicleta e os dois seguiram pela ciclovia, conversando aos gritos e rindo das pessoas que olhavam feio para eles. Quando chegaram ao ponto próximo ao seu endereço, Daniel freou a bike ao lado de Megan e perguntou pela décima vez se ela não queria uma carona no cano até sua casa.
— Já disse que não, sou muito pesada, a gente vai se esborrachar no chão. E não, não tem comida pra você hoje lá em casa, nem pra lombriga que vive aí dentro.
Ele resmungou, mas quando falou de novo seu tom era mais sério.
— Eu te acompanho a pé, então. E você não é pesada.
Ela sorriu, sentindo algo borbulhar de um jeito esquisito na barriga.
— Não precisa, Daniel. Mesmo. Eu tô bem.
— Tu não quer mesmo ajuda com isso?
Megan agradeceu de novo, mas insistiu que aquele era um trabalho em família, só entre ela e o pai.
— Tá bem, tá bem. Já vi que você tá me dando um pé na bunda – ele suspirou e, logo depois, enfiou a mão no bolso da calça e tirou de lá um bombom meio amassado, que enfiou na mão de Megan antes que ela recusasse. – Toma. Chocolate é bom contra dementadores. E é pra comer, esquece essa dieta doida aí que isso é deprimente.
Megan riu. Daniel se inclinou um pouco para a frente, mas então pareceu mudar de ideia, um tanto assustado, e deu duas palmadas desajeitadas em suas costas. Saiu pedalando bem rápido logo depois, sem olhar para trás, deixando-a sozinha com seus demônios. Ou dementadores.
*
Megan abriu a porta da geladeira. Havia água, margarina, suco e várias caixinhas de achocolatado pronto para Mina, nada realmente comestível. Para piorar, seu pai ligou avisando que só chegaria mais ou menos dali a uma hora. A garota pegou um pouco d’água e acabou engolindo dois copos para acalmar o estômago.
Alanis se enroscou aos seus pés, miando baixinho e dando cabeçadas em sua panturrilha. Megan suspirou e encheu o pote de comida. Ainda havia um pouco de ração no comedouro, mas a gata sempre ficava doida quando enxergava o fundo do pote.
Depois disso, Megan apanhou na escrivaninha o exemplar de Harry Potter e a Ordem da Fênix. Coisa do Daniel, claro. Ela ainda estava com o bombom no bolso, provavelmente o comeria só mais tarde, depois que passasse pelos “dementadores”,
como ele chamou sua tarefa. Daniel andara emprestando toda sua coleção de livros para Megan, insistindo que, se ela não lesse e gostasse, a amizade deles estaria por um fio. Por sorte, Megan estava gostando bastante da leitura, apesar de ser preguiçosa (perto de Daniel, que parecia uma traça, ela era novamente uma lesma). Na verdade, ela se identificava bastante com Harry, principalmente nesse livro: Megan andava com vontade de gritar com todo mundo, mas no final das contas acabava mesmo ficando calada.
Pensou em se sentar na cama e começar a ler para passar o tempo, mas se distraía a todo o momento com a porta do quarto do pai, que não parava de bater. Ele devia ter esquecido a janela aberta de novo. A garota largou o livro e caminhou até lá.
Dificilmente entrava ali quando o pai não estava. Assim que o fez, bateu os olhos na cama de casal, desarrumada apenas de um lado. Seu pai ainda dormia do mesmo lado do colchão e deixava o outro vazio. Ele comentara um dia desses que, quando se mudasse, provavelmente compraria uma cama de solteiro, mas Megan não sabia se acreditava: ele falava em comprar essa cama havia anos.
Depois de fechar a janela, a garota se sentou no lugar onde sua mãe dormia e alisou a colcha. A maioria das lembranças que tinha dela naquela cama não eram boas, mas ainda havia algumas que se salvavam, como quando ela deitou um dia ao lado da mãe e ela lhe contou como soube que estava grávida de Megan e como foi o dia em que ela nasceu. Megan se lembrava de ver as suas lágrimas refletidas nos olhos da mãe, pelos quais também escorria amor.
Havia uma foto enquadrada dos pais, enorme, sobre a cabeceira da cama. A garota observou o rosto da mãe, tão sorridente, os cabelos curtos, loiro escuro, cor de melado. Olhando de certo ângulo, podia até parecer que a mãe olhava para ela.
Ela se deitou na cama, bem onde a mãe costumava ficar. Ficou de lado, o nariz bem próximo do lençol, tentando lembrar qual era seu cheiro. Ela via sua própria imagem no grande espelho que ficava na parede ao lado da cama. Os cabelos muito pretos, quase azulados, cortados rente ao ombro. As mechas roxas. O que sua mãe diria do seu cabelo? Megan também era loira e todos diziam que seu cabelo era o mais parecido com o da mãe, que não era oriental. O cabelo de Mina era preto, como o do pai; a menina era a cara dele, uma perfeita japonesinha de olhinhos pequenos e puxados, o cabelo liso e escuro. Contrariando todo mundo, Megan resolveu pintar as madeixas louras; o motivo, que não contava para ninguém, era que não conseguia suportar o próprio cabelo depois que a mãe faleceu. Às vezes era difícil até mesmo encarar seu próprio rosto no espelho; não era só o cabelo, eram também os olhos, grandes e verdes, tão diferentes dos olhos do pai ou de Mina, os traços inegavelmente ocidentais. As pessoas tinham razão quando diziam que mãe e filha eram parecidas. Exausta, Megan fechou os olhos pelo que pareceram apenas cinco minutos.
Quando os abriu de novo, o reflexo no espelho tinha cabelos longos e loiros.
Não era a imagem de Megan que a olhava de volta no espelho.
Era a imagem de quem ela deveria ser.


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