Rockfeller




Alexandre Apolca
Rockfeller


Prefácio                                         

Era mais uma noite como todas as outras se não fosse a tempestade recheada de raios que desabava sobre a cidade. Já lera os três únicos romances disponíveis. Como de costume, a insônia era a minha única companheira naquelas primeiras horas do dia. Meu cigarro paraguaio acabara. Você pode até imaginar, mas nunca chegará perto de saber como este lugar é tedioso. Só por Deus!
O cheiro de terra molhada me trazia recordações, tanto que via toda a minha vida passar diante dos meus olhos; isso deveria acontecer na hora da morte.
De repente me lembrei do corvo que me perseguia há anos. Como me esqueceria de seu olhar demoníaco que me arrepiava, e que, agora, apenas me deixava curioso. Ele parecia um papagaio, pois sempre respondia a mesma coisa, “Nevermore”.
Logo me recordei do livro de Scarlett e, do nada, tive a ideia de colocar a minha história no papel como se fosse um livro. Foi assim que surgiu isto que você está lendo.
Quero deixar claro que eu não sou escritor, portanto, isto aqui não passa de uma desajeitada tentativa de fazer literatura e, principalmente, de fazer o tempo passar. Não tenho vergonha de nada do que fiz, por isso entrarei nos detalhes mais íntimos do meu passado. Espero que você me perdoe caso este monte de baboseiras apresente falhas de coerência e coesão; repito, não sou escritor de verdade. Se eu reforçar excessivamente algo, ocultar alguma coisa, ou ainda der pouco destaque em certos assuntos, peço-lhe mil desculpas, pois a minha memória não é mais a mesma.
Caso isto se transforme em livro — se você está lendo é porque se transformou —, acredito que não deverá vender mais do que dez ou vinte exemplares. Consequentemente, você está com uma raridade em mãos, pode se vangloriar por isso e se considerar um sortudo ou um amaldiçoado.
Esta é a primeira vez que tento escrever algo de concreto. Quero destacar que eu odiava redações nos tempos de colégio, vivia fazendo letras enormes e contando as linhas para terminar logo. Conseguia notas nas aulas de português graças às colas dos colegas. Chega a ser incoerência eu tentar fazer literatura, mas que se foda! Isto aqui não é e nunca será um livro de verdade!
E chega de blábláblá, vamos ao que interessa...
                                                             
                                                                                            
                                                                                                           Beto Rockfeller
                                                                                                   Niterói, Rio de Janeiro
                                                                                                    20 de agosto de 2011


01
                                          
 O público pulava alucinadamente, éramos a última banda — aliás, a mais desconhecida do circuito amador do rock da terra da garoa — que se apresentava no festival. Diria que noventa por cento das pessoas estavam extremamente embriagadas ou drogadas, por isso, elas não tinham boas condições sequer de distinguir um The Doors de uma Fafá de Belém. Apesar disso, metade do público fora embora quando nós subimos no palco. Conseguimos o honroso fechamento do festival graças à influência do pai de Gringo, que era funcionário do consulado da Inglaterra em São Paulo e mexera os pauzinhos. Éramos a Escória Humana — uma banda de rock mais voltada ao punk —, e estávamos cantando no tradicionalíssimo porão da casa noturna Madame Satã, o point do underground paulistano. Nesse templo, já passaram Cazuza, RPM, Ira! e tantos outros. O ambiente era escuro, esfumaçado, e estupidamente quente. Acho que era noite de quinta-feira ou madrugada de sexta, mas que importância teria? Éramos quatro jovens retardados tentando fazer rock and roll.
— E pra fechar! Vamos de cover de Legião Urbana! Geração Coca-cola, cria do maior letrista brasileiro da atualidade, Renato Russo! — anunciei.
Tomei mais um gole de cerveja e comecei:
— Quando nascemos fomos programados a receber o que vocês nos empurraram com os enlatados dos USA, de nove às seis...
Terminamos a canção. Logo eu apresentei a banda:
— Somos a banda Escória Humana! Na guitarra, ele que veio da terra dos Beatles, Gringo! No baixo, ele, o John Lennon brasileiro, Santiago dos Santos! Na bateria, ele, o lactobacilo doidão, Yakult! No vocal, eu, o demente Rockfeller! A apresentação chega ao fim, mas estamos convidando a todos vocês para nos reunirmos agora mesmo, lá fora, para irmos ao MASP. Iremos protestar contra o governo Sarney. Contamos com todos! Como disse Abraham Lincoln “Pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens em covardes”.
Desmontamos tudo e colocamos no Corcel mostarda 73 de Yakult. Entrei na boate novamente, para comprar mais uma cerveja com as moedinhas que eu encontrara no chão. Meus olhos brilharam ao ver as encantadoras letras de neon vermelho que escreviam o nome da boate. Alguém fazia um striptease num canto. Quase fiquei surdo com o berro da mulher-repolho — uma gorda enjaulada que passava a noite toda comendo repolho, bebendo vodca e uísque, e gritando. Playboyzinhos e pseudointelectuais da USP estavam doidos de ácido. O Madame Satã era uma salada cultural; ponto de encontro de punks, góticos, artistas, gays, estudantes, intelectuais, transformistas, poetas, entre outros. Local de expressões artísticas, e onde todos se transformavam em personagens que se soltavam ao extremo. Lugar em que rolava de tudo, absolutamente tudo!
Saí da boate e logo me lembrei de uma declaração de Gringo que dizia se lamentar por não ter visto as performances de Claudia Wonder na banheira com groselha, ela — uma travesti — se despia toda e saía molhando as pessoas. Esse inglesinho, ah, tinha as minhas dúvidas.
A revolta me dominou ao notar que somente sete pessoas aceitaram o convite para o protesto. Olhei para a multidão que bebia e ria entre os carros, a encarei e disparei:
 — Que porra é essa! Os políticos metem a mão no nosso dinheiro, os norte-americanos nos obrigam a engolir a cultura deles, os policiais nos batem, a inflação aumenta, e o que fazemos? Nada! Pois está tudo muito bom, tudo muito bem. A maioria de vocês prefere assistir a uma telenovela ou vinte e dois homens correndo atrás de uma bola, prefere encher o cu de álcool, prefere transar sem camisinha pra pegar AIDS, do que lutar pelos nossos direitos. Vão à merda! Mas, eu ainda acredito no Brasil; ainda creio que nós acordaremos e colocaremos centenas, ou quem sabe milhões, de pessoas nas ruas protestando em prol de um país melhor, de um mundo mais digno para as futuras gerações. Eu acredito! Eu sonho!
Indignado, eu logo entrei no Corcel e Yakult dirigiu até a Avenida Paulista, os sete — mal-encarados, por sinal — nos seguiram em dois carros. Rapidamente chegamos, saímos, e fomos ao Vão Livre do MASP. Fumamos um baseado enquanto esticávamos as faixas. Como era bela a cidade durante a noite... Os prédios iluminados, a avenida movimentada, e as culturas se cruzando.
Logo invadimos a avenida, com cartazes e muito barulho. Era madrugada. De repente, eu vi os mal-encarados quebrando os orelhões, arrancando placas, derramando lixo, enfim, praticando vandalismo! Não resisti e parti para cima do primeiro que vi.
— Você tem merda na cabeça?! Destruindo o patrimônio público! Sabe quem vai pagar por isso? Somos nós mesmos, seu idiota!
— Vai se foder! — retrucou me ignorando.
Enfureci de vez e pulei em cima dele. Rolamos no chão, trocando socos e pontapés. Ouvi a sirene, eram os PMs! Levantei e tentei correr, mas já era tarde.
Os policiais nos cercaram, eu e o vândalo. Ao fundo, pude ver Yakult correndo. Essa era a nossa lei: viatura chegando, pernas para quem as tem.
— Posso saber o que está acontecendo aqui? — perguntou o policial.
— Esses anarquistas vieram estragar o nosso protesto! Aí eu parti pra cima dele, seu policial. Se eu fosse vocês, olharia a mochila dele — respondeu surpreendentemente o vândalo.
Como assim? Eu era o anarquista da história, e ele o herói? Que absurdo! Cínico do caralho! Essa mochila a que ele se referia, abandonada ao meu lado, eu nunca tinha visto antes, nunca! Tentei contar a minha versão, mas fui interrompido.
— O que é isto? Responda-me agora, o que é isto?! — gritou o policial me mostrando um coquetel Molotov retirado da mochila abandonada.
— Acho que é Molotov...
— Acha?! Você está preso! — disse ele me jogando de peito no chão e me algemando por trás.
Logo me arremessaram no chiqueirinho e me trancaram. Ainda pude ver o verdadeiro vândalo sentado na calçada, fumando e me acenando com um tchauzinho. E a viatura foi embora...

 02
                                     
 Tentei argumentar, mas eles me ameaçaram se eu continuasse falando. Desse jeito, me calei e fiquei apenas curtindo o visual. Pessoas, árvores, placas, casas, postes... Tudo foi ficando para trás, e isso me deixava reflexivo... Pensativo... A minha vida inteira repassava diante dos meus olhos...
Filho de Antônio Araújo — que era formado em direito, mas trabalhava como feirante nas ruas da 25 de Março — e Genilda Oliveira — mais conhecida como Geni, uma mineira de Três Corações, ex-faxineira e que trabalhava como dona de casa —, nasci com três quilos e cem gramas na maternidade paulistana São Luiz, em meados de 1970. Vivi toda a minha vida no antigo casarão herdado pelo meu pai, localizado na Alameda Nothmann. 
Fui registrado no cartório como Beto Rockfeller Araújo. O nome foi escolha da minha querida mãezinha, uma pequena homenagem ao maior sucesso das telinhas na época, a novela Beto Rockfeller da extinta TV Tupi.
A mesmice foi a protagonista da minha infância. Na pré-adolescência, também não houve nada de que eu pudesse me vangloriar ou me envergonhar. No colégio, estudei pouco, tive várias suspensões, fiz algumas amizades, e peguei várias garotas.
Sempre me disseram que o amor era um sentimento magnífico. Descobri, na prática, que esse negócio não passava de melodrama de meninos mela-cuecas e de meninas que sonhavam com príncipe encantado; em relação aos adultos, esses eram pessoas mimadas e carentes que não possuíam amor próprio. Já namorei algumas garotas, mas sempre me mantive racional porque eu não era um mela-cueca! Minha última, Penélope, me trocou pelo vocalista dos Psicóticos do ABC, uma banda punk que começara a fazer certo sucesso na Grande São Paulo. Cheguei a sair algumas vezes com Raquel Mattos, baixista da banda Baseados na Realidade, mas tudo acabou quando a vi fazendo um striptease — e que striptease — numa roda de contraditórios skinheads em pleno Madame Satã. Eu odiava skinheads!
Meu último emprego com carteira registrada fora na Padaria Rosário, onde eu entrava no meio da madrugada para assar pães — e, por muitas vezes, para dar uns pegas na filha do dono. Fui mandado embora porque o patrão, que morava no andar de cima, me pegou no flagra com sua filha rolando em cima da mesa com farinha voando para todo lado.
Meus melhores amigos eram os companheiros de banda.
Yakult — oficialmente Odair José — fora meu melhor amigo no colégio. Nós matávamos muitas aulas para ir a casa dele, onde passávamos as tardes ouvindo Sex Pistols e Rolling Stones, regadas a muito Yakult com vodca — por isso o apelido. Ele era uma mistura de hippie com punk. Possuía longos cabelos castanhos, era magricelo, amarelado, parecia um afegão desnutrido, usava calças rasgadas, era todo místico, acreditava em discos voadores e curtia filosofia. Era fã de Raul Seixas, Led Zeppelin e Pink Floyd. Tinha um Corcel mostarda e uma moto RD 350; trabalhava de motoboy. Ele tinha dois sonhos: conhecer Machu Picchu e ser abduzido.
Santiago dos Santos, o John Lennon — eles eram bem parecidos fisicamente — brasileiro, era um sujeito que não bebia, comia com farinha. Vê-lo lúcido era tão raro quanto ver o cometa Halley. Era conhecido por pegar as garotas mais impossíveis. Fazia bicos numa funerária; lavando, vestindo, e maquiando defuntos. Obviamente era fã de The Beatles! Viera do interior, Limeira! Era primo de Yakult, aliás, eles moravam juntos num puxadinho nos fundos da casa dos pais do lactobacilo doidão. Ah, Santiago era fissurado na cantora Madonna.
 Gringo, cujo nome era Donald Miller, era filho de ingleses. Tinha paixão por literatura, era fã de Machado de Assis. Na música, adorava The Who e Sex Pistols. Era um autêntico playboy, mas gente boa! Não trabalhava, só queria curtir a vida e tocar rock and roll. Pegava mulheres, mas possuía um estilo meio gay. Tinha cabelos loiros e compridos, pele pálida, e fisicamente parecia um típico inglês londrino e, de fato, era. Sua última namorada o trocara por uma mulher, o que aumentou os rumores em relação a sua orientação sexual.
Eu e Yakult começamos aprendendo a tocar bateria. Ele se destacou, já eu... Aí surgiu Santiago com um baixo nas costas vindo de Limeira para dividir o quarto com o primo. Já éramos três, e eu comecei a me destacar no vocal, sendo que instrumento não era a minha praia. Faltava um guitarrista, faltava! Nós nos conhecemos em um show de Os Paralamas do Sucesso, quando ele nos apresentou algumas belas garotas da classe média paulistana. Uma delas queria sair com Santiago, o pegador! No fim das contas ficamos amigos, ainda mais depois que ele nos disse que estava aprendendo a tocar guitarra. Assim se formou a banda, cujo nome foi criado por esse inglesinho esquisito.
Meu sonho? Gravar um LP, tocar nas rádios, fazer grandes shows pelo país afora, vender milhares de cópias, aparecer na mídia, enfim, fazer sucesso.
A viatura parou, enfim chegamos à delegacia. Dois policiais abriram o chiqueirinho e me arrastaram para um quarto escuro, onde me empurraram e mandaram ver... Foram inúmeras cacetadas nas costas, até que caí esfacelado; aí vieram os pontapés de todo lado. Já eram uns cinco policiais me açoitando. A dor era insuportável, mas o pior eram as humilhações verbais. Minha visão escurecia cada vez mais, a última coisa que senti foi um pontapé nas partes baixas e naquele instante eu apaguei...

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