Crônicas de Silbery – O Segredo do Bosque


Priscila M. Magalhães
Crônicas de Silbery – O Segredo do Bosque




V
era está no meio de um campo de batalha cercada por seres estranhos que, apesar de passarem por ela correndo feito borrões, ela sabe que não são humanos, sabe que corre perigo e precisa salvar sua irmãs.
Desesperada procura por elas, olhando em câmera lenta para todas as direções, mas vê apenas poeira levantada e os borrões das criaturas, que lutam entre si ferozmente numa sangrenta batalha pela posse de algo, mas ela não sabe o que, e não lhe faz sentido estar ali, nada parece ter a ver com ela, apesar de seu coração indicar quais borrões estão lutando por uma causa justa e quais são maléficos.
Grita por suas irmãs, mas sua voz não sai; apenas um som preso na garganta feito caroço de pêssego. Tenta correr, mas seus pés estão firmemente presos ao chão e quando olha para baixo, percebe que eles estão transformados em grossas raízes fincadas na terra. Percebe então que ela faz parte daquele lugar como as raízes de uma grande árvore encravada no solo e que sempre pertenceu àquele pedaço de chão.
Estendendo o braço direito para o alto, surge em sua mão uma admirável espada que reluz um brilho tão forte que chega a ofuscá-la, mas ao olhar diretamente para a lâmina segundos depois, eis que surge um rosto de mulher. Seu aspecto é raivoso e seus olhos flamejantes como o vermelho de seu vestido.
– Cuidado! – Alguém a alerta e ela vira-se tão rapidamente quando pode, e então ela está ali, frente a frente. Seus olhos muito abertos fixam-se nos de Vera e sua mão lânguida sobre uma esfera alaranjada na ponta de um cajado se eleva, apontando o mesmo para feri-la.
– Vera! Vera...
Alguém toca em seu braço e ela sente a quentura do toque em sua pele. Sua mãe ao seu lado a faz pensar em como ela chegou ao campo de batalha também.
– Querida acorda! Uma voz meiga soa em seus ouvidos.
Num sobressalto ela senta da cama. Está banhada em suor mais uma vez.
– Criaturas estranhas novamente? Pergunta a mãe tirando dos olhos de Vera uma mecha úmida de cabelo.
– Uhum. – murmurou a filha.
– Amor você anda cansada, tem dormido pouco, o que está acontecendo? – a mãe está preocupada, e seu olhar cheio de inquietações desce para o tapete verde aos pés da cama, onde vê um livro tombado e o pega cuidadosamente, lendo o título. – A Senhora das sombras? Desde quando se interessa por isso? – quer saber, cerrando o cenho.
– Desde que comecei a sonhar com essas coisas. – Vera bocejou, estava se sentindo muito cansada.
– Querida, são apenas sonhos. Não pode se impressionar com isso e devorar todos os livros que encontrar para descobrir o porquê de estar sonhando com essas coisas. Não deveria estar estudando para a prova quando perde tempo com essas leituras? Filha já estamos no fim do semestre, e sua professora me disse que suas notas caíram significativamente.
– Mãe, caiu pra oito – respondeu Vera revirando os olhos – Isso nem chega a ser significativo. E quando falou com ela?
– Ok, ela exagerou nos termos. – a mãe ponderou, colocando as mãos sobre os joelhos – Estava outro dia no supermercado e encontrei-a na banca das verduras e ela me abordou de imediato. Nossa ela é estranha.
Ambas riram.
– Se diz que ela é estranha deve estar falando da professora Azera... – Vera não terminou a frase, olhou o relógio sobre o criado mudo e deu um pulo da cama, espalhando os cobertores pelo chão.
– Mãe porque você não me acordou? –
– Mas estava te chamando há dez minutos. – Raquel reclamou, recolhendo  e dobrando os cobertores que a filha derrubou.
Vera correu para tomar uma ducha enquanto Raquel descia para preparar o café da manhã das filhas. Tinha que deixar as garotas na escola e correr para o trabalho. Ser mãe de quatro filhas e conciliar com o trabalho realmente era uma rotina estressante. As manhãs eram sempre corridas e tanto ela quanto as filhas acabavam sempre chegando atrasadas por mais que Raquel tentasse o contrário.
– Mãe que droga vou chegar atrasada outra vez? – Bom dia para você também, Joana. Um sorriso cairia bem nesse seu rostinho lindo. – Raquel apertou as bochechas da filha, mas Joana fechou ainda mais a cara. De manhã era mais mal humorada que o habitual, chegando a ser irritante e inconveniente.
Jogou os longos cabelos negros para trás, mordendo um pedaço de biscoito de chocolate com má vontade, quando Sofia entrou espalhafatosamente na cozinha, e revirou os olhos ao constatar, mais  uma vez, que a irmã estava vestida de princesa.
– De novo não. – sorriu divertida, mas daqueles divertimentos debochados e maldosos – Mãe quer dizer á ela que não é uma princesa? Está mais para uma sapa.
– Joana, por favor... – Repreendeu a mãe. – Sofi, sabe que não pode ir vestida assim pra escola. Filha já conversamos tanto sobre isso. – Raquel passou a mão sobre a testa, desolada.
– Mas mãe, hoje é aniversário da Sandy, não é um dia normal. – justificou a pequena, levantando ambas as mãos com as palmas viradas para cima, num suplício inocente
– Filha o aniversário da Sandy é só depois do intervalo, e até lá você terá aula normal, não será nada confortável ficar com essa roupa cheia de panos. – Raquel ponderou, tentando fazer a filha ver que não ficaria bem vestida daquele jeito todo aquele tempo.
– Sabia que falaria isso. Você está ficando chata viu mãe? – Sofia reclamou, tirando o vestido ali mesmo. Por baixo daquela fantasia de princesa Jasmine, já trazia o uniforme da escola em caso da mãe barrar seus planos pueris.
– Ótimo, agora eu sou a chata. – Bufou Raquel, para em seguida ver a bagunça que a pequena Milca fazia – Vera, traga outra blusinha, Milca derramou suco na ...
– Mãe estou aqui, não precisa gritar. – Respondeu a filha já sentada á mesa tomando o café.
– Que família de loucos. – resmungou Joana.
– Filha corra lá e pegue a blusinha...
– Já peguei. – Disse Vera entregando-lhe a blusa rosa com um delicado bordado de fores na frente. Raquel a olhou estranhamente enquanto pegava de sua mão a blusa.
– É isso todo dia. – justificou-se a filha. – Já pensou em colocar um babador nela?
– Obrigada. – Respondeu, sem tirar os olhos de Vera enquanto passava os dedos pelos sedosos cachos loiros da pequena Milca. Estava a mãe ficando repetitiva? – Boa sugestão.
– Mãe nós podemos ir agora? – Joana perguntou pegando a grande mochila preta e colocando-a no ombro direito.
– Sim. Vão indo para o carro. – Apressou-se Raquel, limpando as bochechas rosadas e gorduchas de Milca.
– Mas eu ainda não tomei meu café. – reclamou Sofia.
– Tome – disse Joana entregando à irmã uma banana. – parece uma macaca mesmo, pulando de um lado para outro.
– Não sou não – Gritou Sofia – Mãe...
Correram as duas para o carro, empurrando-se mutuamente, enquanto Vera pegava Milca no colo e a mãe, agradecida, pegava a bolsa da creche e sua pasta do escritório.
– Eu vou na frente. – Gritou Sofia correndo para o lado do passageiro.
– Não, eu vou. – Joana retrucou também correndo e dando cotoveladas na pequena, como se ambas tivessem mesma idade.
– Nenhuma das duas vai. – interveio a mãe. – Vera sentará na frente.
– Nossa, que surpresa. – ironizou Joana, bufando alto o suficiente para que todas tivessem a chance em ouvir seu desagrado.
– Vantagem de ser a mais velha. – Vera cutucou, entrando no carro e olhando com aqueles olhos verdes de gato, provocativos e debochados, fazendo Joana dobrar o lábio inferior num sinal de desdém.
A briga continuou até a primeira parada, quando Raquel desceu correndo do carro e entregou a filha e a pasta de trabalho para a auxiliar da creche, que sorria interrogativa.
– Mãe - Vera chamou atrás dela.
– Oh, desculpe. – Riu nervosa, pegando a bolsa da filha que Vera lhe entregava e passando para a auxiliar, que por sua vez devolvia a pasta do escritório.
Deixou finalmente as outras três filhas na porta do colégio. – Comportem-se heim? – Recomendou como sempre. – Beijo filhas.
Mas as três já tinham virado as costas e andavam em direção à entrada com exceção de Sofia, que corria enquanto seus cachos cor de arenito do deserto balançavam num rabo de cavalo preso bem alto.
O portão já estava trancado, mas o amável vigia de bochechas vermelhas, já habituado ao atraso das irmãs, abriu-o todo sorridente.
– Manhã difícil hein meninas? – Brincou, deixando que aquela larga fileira de dentes cor de marfim ficassem á mostra.
– Bom dia Euclides. – Sofia cumprimentou alegremente, piscando os grandes olhos castanhos, enquanto passava como um foguete, seguida de Joana que fingiu não ouvir e Vera, como sempre educada.
– Desculpe por isso novamente. – Vera sorriu timidamente, pois era todo dia a mesma coisa, e não havia mais desculpas, afinal Euclides era singelo e amoroso, assim como seu pai tinha sido.
– Não por isso meninas. – Contestou o vigia complacente, arrumando o cinto em volta da rotunda barriga sob a camisa azul do uniforme.
Vera bateu timidamente com os delicados nós dos dedos na porta da sala, enquanto prendia a respiração por um breve momento antes de entrar. Sabia que a severa professora Azera não gostaria nem um pouco de seu atraso. Murmurou um desculpe e entrou.
Olhando através de seus grandes óculos de grossa armação marrom para o relógio dourado que estava acima da lousa, Azera cruzou os braços e bateu repetidamente o pé direito no chão até que Vera sentasse em seu lugar.
– Bem, agora que Vera está confortavelmente instalada, se não tiver mais nenhum inconveniente que me interromperá novamente, poderemos prosseguir com nossa aula de hoje. – Reclamou a quinquagenária professora com sua fina voz que combinava perfeitamente com seus um e sessenta de altura e pouco mais de quarenta quilos.
– Falávamos sobre a literatura jesuítica. Vera, já que chegou atrasada, mais uma vez, poderia nos dizer quem foi José de Anchieta? – Quis saber enquanto arrumava as folhas sobre sua mesa, deixando-as igualmente alinhadas ás pastas e livros, numa linha equilibrada e tão reta quanto uma régua
Odiando toda aquela exposição, Vera apertou as mãos por debaixo da mesa enquanto sentia lentamente um calor subir por sua face. Sentia-se invadida enquanto todos aqueles pares de olhos de cores e formatos variados se tornavam um único organismo vivo a fitá-la apreensivos por sua resposta
– José de Anchieta foi um padre jesuíta espanhol e um dos fundadores da cidade de São Paulo. – disse numa sonoridade tão baixa quanto lhe conferia sua timidez.
– Oras, por favor, Vera, uma resposta mais completa. – Azera não gostava de respostas resumidas em sua aula. Exigia que dessem vazão ás mentes e mais que isso, que as respostas fossem iguais na medida do que ela passava aos seus alunos, ainda que decoradas.
– José de Anchieta nasceu em 19 de março de 1534 em Tenerife, Espanha. Em 1551 ingressou na Companhia de Jesus, em Portugal e dois anos depois embarcou com destino ao Brasil, na comitiva de Duarte da Costa - segundo Governador Geral - para catequizar os índios. 
 – Bravo – A professora de literatura explodiu numa salva de palmas excessivamente alta. O que fez com que os alunos se entreolhassem num comprimido sorriso. – Bravo Diana. Isso mostra que alguém está realmente interessada em minhas aulas. – e continuando com uma voz uma oitava mais alta do que o normal...
– Estou ficando decepcionada com você Vera. Antes uma aluna que eu usava como modelo de disciplina e competência acadêmica, hoje chego a ter minhas dúvidas se realmente está aqui de mente e não apenas corpo presente, uma vez que está sempre alheia, dispersa. – Sob a forte luz da manhã que entrava pelas amplas janelas da sala, Azera parecia anda menor, como que soterrada pela maciça claridade.
Diana, a aluna que respondeu à pergunta tão prontamente como um prato cheio de exibicionismo, olhou com seus grandes olhos verdes para Vera e jogou o longo cabelo castanho para trás, que balançou provocadoramente brilhoso.
Vera sabia que Diana não gostava dela, e mais que isso, sabia que a bela menina de olhos cor de bala de hortelã insinuava-se para Carlos, o belo garoto dos sonhos de Vera.
A primeira aula foi uma exposição pela qual Vera não esperava passar logo pela manhã. De cabeça baixa e os loiros cabelos cobrindo o rosto ainda vermelho de vergonha, torcia fortemente para que ninguém a notasse pelo resto do período, enquanto rabiscava nervosamente um papel.
Tudo o que queria era que aquela manhã terminasse o quanto antes e ela pudesse voltar para casa, para seus livros e o mundo de fantasias que encontrava neles, sendo mera observadora, ou quem sabe, protagonista, dependendo de qual fosse o enredo. Ao menos com eles podia ser ela mesma e o que era melhor, não tinha que passar pelo crivo de exigências á que as pessoas poderiam fazê-la passar
– O Dragão de meio metro já foi. – Aquela voz levemente rouca e macia a tirou de seus devaneios tão rapidamente quanto um raio, levando-a a um sobressalto. Sua respiração parou e seu coração acelerou, mas antes que levantasse a cabeça um segundo depois, já sabia a quem pertencia àquela forte voz aveludada que tocava sua face num vapor morno e adocicado
– Você fez isso? – Carlos apontou para o esboço do rosto de uma elfa guerreira desenhada na folha do caderno já rabiscada por outros desenhos e anotações.
– Sim eu... Bom isso não é nada. – Vera cobriu o desenho colocando um caderno sobre ele. Corou imediatamente e não sabia para onde olhar. Não ousava encará-lo
– Isso é genial. Sério ficou... Eu não seria capaz de fazer igual nem em uma década. – obviamente ele estava exagerando e querendo fazê-la acreditar que nunca seria capaz de tamanha desenvoltura com a arte de desenhar, mas Carlos percebeu que Vera estava desconfortável e arrependeu-se por ter sido tão direto, talvez inoportuno. –
– Obrigada, eu... Poxa é só um rabisco, nada demais – E recolhendo os materiais para ir para a sala de biologia. – Bom, é melhor nós irmos. – disse cobrindo o peito com os cadernos. Ela achava seus seios pequenos demais e acreditava que isso afastava os garotos.
***
De frente para uma grande coruja marrom empalhada e com as grandiosas asas abertas que ficava sobre o velho armário cinzento, Vera sentiu-se ligeiramente desconfortável com aquele par de olhos amarelos que a fitavam ostensivamente. Mas todas as outras mesas, com exceção da que estava Diana, estavam ocupadas.
– Desculpe por aquilo. – Carlos desculpou-se, sentando a seu lado. Olhava-a com seus olhos brilhantes de um chocolate derretido e isso a fazia segurar a respiração.
Vera estremeceu. Carlos tinha mexido com ela desde o primeiro dia de aula, mas sabia que suas chances eram nulas com ele, até porque, do alto de seu corpo torneado pelos esportes que praticava, sua bela cabeça de vasta cabeleira negra não iria sequer virar para notar uma sem graça garota magricela e pior, a nerd da sala. Mas notou.
– Oi? – por segundos ela havia se perdido naquele olhar e esquecido o episódio da sala. – Ah, não. Claro que não, está tudo bem. – O tom de sua voz denunciava que estava nervosa, e se odiou por isso, engolindo em seco uma inexistente saliva
– Aquela coruja me dá arrepios. – Carlos comentou, sorrindo. – Aqueles enormes olhos amarelos sempre fixos, perecendo nos espionar. Em você não?
– Pensei que era só eu. – Vera Conseguiu enfim falar uma frase sem que gaguejasse ou balbuciasse. – Na verdade, eu a acho medonha com essas asas enormes. Isso é de terrível mau gosto. – Ambos sorriram e Vera achou naquele sorriso algo de cumplicidade. Carlos compartilhava com ela o mesmo sentimento sobre aquela coruja enigmática. Isso era fantástico.
– Bom dia, minhas crianças lindas. Espero que estejam animados porque hoje iremos brincar muito. – anunciou o professor de voz de trovão, tão logo passou pelo vão da porta.
Rubens, o professor de biologia, não era exatamente o tipo de mestre que a professora Azera aprovaria, justamente por ser o oposto dela. Isso sem mencionar apenas o fato de ser um grande homem, na estatura e mais que isso, no grande coração, na grande mente brilhante, no grande caráter e na grande gentileza com que tratava seus alunos.
Endireitando-se em sua cadeira, Vera mal conseguia respirar e no pouco que o fazia sentia aquele inebriante perfume masculino que Carlos exalava.
– O homem, em sua arrogância, pensa em si mesmo como uma grande obra, merecedora da intervenção de uma divindade. Alguém sabe de quem é essa famosa frase?
– Charles Darwin. – Respondeu Carlos
– Isso mesmo meu excelentíssimo Aluno. E sabe me dizer quem são os habitantes mais antigos do planeta? – Perguntou naquele seu jeito espirituoso em que levantava uma das sobrancelhas e umas das mãos ficava suspensa no ar esperando uma resposta.
– As bactérias.
– Esplêndido. – Aplaudiu, socando o ar. – Estima-se que as primeiras bactérias surgiram aproximadamente a 3,8 bilhões de anos atrás. E os estromatólitos - registros fósseis para quem ainda não
 sabe - evidenciam a existência dessas bactérias que viveram a mais de três bilhões de anos atrás.
– A teoria da evolução – resmungou Alberto sentado logo atrás de Vera. – Mas já vou avisando de que eu não vim do macaco.
– Ótimo, temos um criacionista aqui. – Disse o professor Rubens de muito bom humor, o que abriu o leque para calorosas discussões na sala sobre o tema criacionismo versus evolucionismo.
Vera já se sentia menos nervosa ao lado de Carlos, que agora sorria absorto nos comentários e discussões, por vezes acalorado e acalmado pelo professor, que mediava o assunto e intervia entre os mais apimentados.
Quando enfim as aulas terminaram, Vera viu-se frente a Carlos, cadernos encostados no peito, seguros por uma mão enquanto a outra segurava a mochila de tecido jens sobre o ombro estreito. Aquilo era real? Ele estava ali na sua frente sorrindo com aqueles dentes perfeitamente alinhados e de uma brancura quase ofuscante?
– Bom então até amanhã. – ela disse primeiro. Um nervoso sorriso apareceu rapidamente em seus lábios.
– Até amanhã. Bem... – iniciou ele esfregando desajeitadamente uma mão na outra – Se quiser posso te dar uma carona.
Ela iria dizer alguma coisa do tipo “fica para a próxima” quando o encanto acabou assim que Joana chegou perto.
– Vamos logo. Mamãe está esperando. – disse olhando de relance para Carlos medindo-o sem ser educada, com aqueles olhos que dizem: E daí se você é bonito? Dane-se.
Aquilo foi um balde de água fria sobre Vera. Sentiu-se uma criança tola que precisava da mamãe para acompanhá-la até em casa. Um calor subiu à sua face e percebeu e que estava vermelha, como sempre acontecia nesses momentos em que a timidez e insegurança se assenhoravam dela.
Conseguindo apenas acenar ligeiramente com a cabeça, virou as costas imediatamente, caminhando depressa. Estaria ele agora rindo dela? Uma criança tola e ingênua isso sim. Se derretendo toda só porque o cara mais gato da escola disse meia dúzia de palavras para ela.
Vera andava pela grama e de longe podia ver Sofia e Joana brigando uma com a outra enquanto sua mãe, sentada ao volante, dizia alguma coisa. Provavelmente mandava-as parar e dizia algo do tipo “não agüento mais” e “preciso urgente de férias”. A mãe estava cansada já de tudo aquilo.
Vera estava cansada também. Desde que seu pai faleceu há dois anos sentia como que um peso caísse sobre sua família. A mãe trabalhando dobrado para dar conta de tudo aquilo e ela, Vera, tornara-se uma jovem responsável pela criação de suas irmãs. Na verdade das duas menores já que Joana, assim como ela, já não era criança há algum tempo.
Mas Joana mudou muito desde que seu pai morreu. Antes uma menina doce, amável, sempre disposta a uma boa gargalhada, agora parecia estar sempre de mal do mundo, rancorosa, amarga.
Vera já tinha pedido inúmeras vezes à mãe para voltar sozinha com suas irmãs para casa. Moravam a poucos quarteirões da escola e podia dar conta do recado. Mas a mãe, chegando num stress de preocupação que já extrapolava o limite aceitável, se negava veementemente, alegando os perigos da cidade, os maníacos possíveis que poderiam abordá-las e os acidentes que supostamente poderiam sofrer.
Então não, esse assunto não estava aberto a discussões e, portanto, Vera continuaria pagando mico toda a vez que sua mãe chegava buzinando na porta da escola para buscar a ela e sua irmãs.
– Filha pegue Milca para mim, por favor. – Pediu para Vera assim que estacionou na frente da confortável casa de dois andares em que moravam, com uma varanda repleta de flores.
Não eram ricas, obviamente, mas tinham um teto confortável e algumas economias que o pai deixara. Mas a Mãe trabalhava muito para que nada faltasse às filhas, chegando ao ponto de varar a noite frente ao computador fazendo horas extras.
Vera sabia que a mãe tinha vindo de uma família rica. Aliás, a única ainda viva de sua árvore genealógica ascendente era a tia de sua mãe, portanto sua tia-avó Gertrudes, uma rica solteirona que morava no interior de outro estado.
Mas sabia também que ambas tinham rompido assim que sua mãe casou com seu pai. Isso de fato causou um rompimento entre as duas. Por anos ficaram sem se falar quando tia Gertrudes declarou sua desaprovação ao casamento da sobrinha e a ameaçou com a grandiosa fortuna que tinha.
Com a morte do pai de Vera, houve uma reaproximação, mas Raquel não pode deixar de sentir mágoa da tia e negar veementemente qualquer ajuda financeira. Tinha orgulho próprio, dizia.
– Porque sempre pede para eu fazer tudo, Joana está ao lado de Milca, peça à ela que pegue. – Vera não quis ser rude com a mãe, mas sentia-se cansada de tudo aquilo.
Raquel nada respondeu; passando a mão pelas têmporas, como sempre fazia quando ficava sem saber o que responder, puxou os cabelos castanhos escuros e ajeitou-os num curto rabo de cavalo que ondulava até o ombro.
– Ela pediu para você Vera, suas vantagens por ser a mais velha. – Respondeu Joana. E virando as costas para a irmã – Não se esqueça de pegar também a mochila da creche.
Vera se irritou com Joana, sempre pronta para uma discussão, cheia de agressividade gratuita, com uma resposta mal criada na ponta da língua sempre a espera. Era quase impossível a comunicação das duas sem que levasse á uma discussão no final.
– Mãe olha o que ganhei. – Sofia corria em volta da mãe querendo mostrar a lembrança de aniversário que ganhou na festinha. Um arco dourado de princesa com uma bela imitação de esmeralda no cento
– Oh! Que lindo Sofi, realmente maravilhoso. – Raquel passou ligeiramente a mão sobre a cabeça da filha enquanto caminhava apressadamente e segurava em um dos braços várias pastas de trabalho.
– É uma tiara de princesa, veja. – Sofia colocou a tiara brilhante na cabeça e, segurando com as pontas do dedo a barra da saia, abaixou-se delicadamente.
– Realmente maravilhoso querida, mas mamãe não pode falar com você agora, tudo bem? Podemos falar sobre isso mais tarde? Quem sabe vemos um filme? O que acha? Barbie e as princesas? – Raquel não parou para conversar, caminhava enquanto falava e era acompanhada pela filha com aquela cara de quem não ganhou a atenção que desejava.
– Mãe, você não vai assistir filme comigo. – A voz de Sofia estava mais para conformada do que decepcionada, o que causou ainda mais desconforto em Raquel. Ambas cruzaram os olhos e Sofia sorriu para ela de um jeito maduro que Raquel não desejou ter visto e isto a magoou.
– Filha, eu prometo que vamos assistir assim que terminar, está bem? – disse a mãe, abaixando até ficar na altura da filha e poder fitá-la naqueles olhos castanhos vivazes, como os de Raquel
– Promete? – Raquel deu o dedo mindinho para que a filha segurasse num sinal de promessa
– Vai trabalhar em casa o resto da tarde? – Vera perguntou assim que colocou Milca na cadeirinha e, abrindo o potinho de comida, colocou-o no micro-ondas para aquecer.
– Sim querida. Sabe que conto com você para cuidar da casa, não é?
– Sim mãe. – Vera respondeu automaticamente e virou-se para retirar o pote assim que o micro-ondas apitou anunciando que o aquecimento terminara.
– Filha está tudo bem? Estou achando você tão distante – Raquel aproximou-se de Vera e pegou em suas mãos.
– Claro mãe, porque não estaria? – Vera disfarçou, retirando a mão. Caminhou até o outro lado da cozinha e, abrindo a gaveta pegou a colher que Milca usava para fazer suas refeições.
– É só... Filha sabe que pode contar comigo, não sabe? – A mãe fez aquela cara de cansada que deixava sua testa com três linhas de expressão. Vera sabia o quanto Raquel dava duro para sustentar as quatro filhas desde que seu pai morreu. As mesmas correrias de sempre, as contas para pagar, o trabalho duro que continuava além do horário e as muitas vezes que acordava no meio da noite e ouvia sua mãe chorando.
Quando ia até seu quarto, via-a abraçada á foto do marido, conversando e desabafando sobre tantas coisas que Vera não ousava perturbá-la e voltava para a cama na ponta dos pés, como se não tivesse presenciado aquilo. Nunca disse à mãe que sabia disso. Nunca contou à Joana que a mãe chorava à noite, mas desconfiava que a irmã também soubesse, quando a flagrava olhando para a mãe com uma mistura de amor e dó.
– Mãe, está tudo bem, prometo. Pode ir trabalhar, sei que tem muita coisa a ser feita, eu posso dar conta do recado, e além do mais, Milca está impaciente e faminta
– Claro. – Raquel afastou-se para que Vera passasse. – Às vezes acho que sobrecarrego você. – Cruzou os braços e ficou olhando Vera enquanto a filha dava a papinha à irmã com igual ou mais prática que ela própria.
– Mãe, não tem muito trabalho a fazer? Pode deixar que eu cuido de minhas irmãs. – Vera dispensou a mãe de forma suave. No fundo não estava a fim de bater aquele papo; não naquele momento.
– O que tem para comer, Vera? – Sofia entrou feito um furacão na cozinha, dando um esbarrão na mãe, que saia.
– Bem, senhorita esfomeada, hoje nós temos arroz, feijão, banana assada e bolo de carne. Está bom ou a madame que algo especial? – Vera brincou, limpando a boca de Milca e a pegando no colo. – Joana pode por o almoço para Sofi enquanto coloco Milca para dormir?
Joana tinha acabado de entrar na cozinha e foi direto para a geladeira, abrindo a porta e olhando por um longo tempo as prateleiras bem abastecidas.
– E por acaso a bebezinha não pode se alimentar sozinha? – Perguntou Joana fechando a porta da geladeira com o pé e abrindo uma garrafa grande de iogurte.
– Já falei que não sou bebezinha, sua cara de uva azeda – Gritou Milca.
– Joana, apenas aqueça para ela, é pedir demais? –
– Joana, apenas aqueça para ela, é pedir demais? – Joana imitou irritantemente e, após tirar o lacre da garrafa, bebeu no gargalo.
– O quê? Não acredito que fez isso. Sabe que isso é anti-higiênico? – Vera ficou muito irritada com aquela demonstração de pouco caso
Dando ainda mais um longo gole, Joana recolocou o lacre na garrafa.
– É mesmo? – perguntou com cara de espanto. – Oh, e agora? Serei punida por ser uma menina má? - colocou os dedos sobre os lábios.
– Porque você tem que fazer isso? – quis saber Vera.
– Isso o quê? – Joana insistia em ser insolente e provocativa
– Não vou fazer seu jogo. – Vera deu as costas para a irmã e se encaminhou até a porta. Contornando a mesa de granito, pediu á Sofia que esperasse até que fizesse a pequena Milca dormir e voltasse para aquecer seu almoço.
– Está olhando o que, cara de sapo? – Joana perguntou á Sofia.
– Vou contar pra mamãe que bebeu na garrafa. – Sofia ameaçou, apertando os olhos e trancando os dentes, como sempre fazia quando queria se fazer ameaçadora.
Joana limitou-se apenas a mostra-lhe a língua. E colocando a garrafa na geladeira. Passou por Sofia e deu um tapa em sua cabeça.
– Vê se cresce, anã.
– Eu não sou anã, sua anta. Tenho a altura certa pra minha idade. Vou contar mesmo. E tomara que sua cara fique cheia de catapora e nenhum menino queira beijar você.
Essas ultimas palavras foram gritadas, e lá do escritório Raquel também gritou, pedindo silêncio.
– Desculpe. – Sofia balbuciou, tapando a boca com ambas as mãos. 
O grande incêndio
– Jura? – Sarah perguntou pela terceira vez – Ele sentou mesmo a seu lado? – o fato dela perguntar mais uma vez fazia o fato se tornar ainda mais real em sua mente de adolescente fantasiosa.
– Estou te falando Sa, ele simplesmente sentou e pediu desculpas por ter olhado meu desenho. E olha que aquilo estava um horror – Vera falou enquanto sorria feito boba com a lembrança nítida que vinha como ondas a todo o momento. – Aquele desenho era só uns rabiscos e ainda assim ele elogiou, dá pra acreditar? – ela sabia que não eram só rabiscos, e modéstia à parte ela mandava bem nos desenhos, que aprendeu vendo vídeos no youtube.
– Nossa, estou nude. – Sarah suspirou rolando sobre o edredom verde limão que cobria sua cama de laca branca e olhou para o teto, visualizando a cena.
– Eu também amiga. Ainda não acredito. Mas pelo menos me tirou a imagem da Azeda dizendo: estou muito decepcionada com você Vera, antes uma menina exemplar...
Vera esganiçou a voz de uma forma cômica e ambas caíram na gargalha com o trocadilho que faziam com o nome da professora Azera.
Sendo a melhor amiga de Vera, Sarah não compartilhava apenas trocadilhos engraçados e segredos sobre paixonites e garotos, mas ela estava ali quando ela perdeu o pai. Sarah ficou ao seu lado o tempo todo e até passou algumas semanas em sua casa, dormindo na mesma cama e consolando quando a amiga caia num buraco de tristeza tão profundo quanto um poço chamado saudade.
Os dezessete anos que as igualava na idade, era apenas uma das muitas coisas que as duas tinham em comum, como livros dramáticos de John Green ou os aterrorizantes exemplares de Stephen King, as conversas animadas ao som de Pitty ou as desilusões compartilhadas com as músicas de Luan Santana.
Mas em matéria de fisionomia, em nada se pareciam, pois enquanto Sarah era uma moça negra muito linda com lábios levemente proeminentes e olhos muito vivazes, segura de seu beleza e confiante em seu poder de sedução, Vera, de pele branca e cabelos claros, assim como seus olhos, que tinham um verde água atípico, como os de seu pai, sentia-se uma branquela sem graça ao lado da amiga, tímida demais para se achar atraente e calada demais ao lado dos rapazes.
– E aquela Diana jogando o cabelo. – risos – Totalmente sem noção... Espera um segundo... – disse Vera à amiga, quando se apercebeu de que algo não estava certo quando um forte cheiro de queimado invadiu seu quarto quase com a mesma precisão com que sua mãe gritava por ela.
– Droga. Preciso desligar, acho que a casa está pegando fogo. – Vera brincou
– Está tudo bem amiga? – Sarah perguntou preocupada.
– Sim. Acho que sim. Deve ser Joana queimando nosso almooço. Depois nos falamos...
A frase foi interrompida com mais um grito de sua mãe, e dessa vez ela não teve dúvidas, era realmente sério, e mais do que pensava.
– Vera corre, está pegando fogo. – dessa vez a voz de Raquel pareceu mais estridente e assustada que de costume, o que fez com que Vera corresse em direção á escada
A negra fumaça que saia da sala e subia os degraus como uma sinistra massa levitando encontrou-a já na metade da escada, e Vera temendo, estancou lá no alto
– Mãe, o que está acontecendo? – sentiu sua voz tremida. Definitivamente aquilo não estava parecendo um almoço queimado.
– Filha, não desça pelas escadas. – Raquel estava parada na porta da sala, mas Vera não podia vê-la –Tente a janela.
Vera estava no andar de cima, a uma altura de quatro metros do chão, e a janela não lhe pareceu uma boa opção de fuga. Subitamente desesperou-se.
– Filha, pegue Milca e vá para a janela. – Raquel repetiu. Estava desesperada, mas Vera sentia uma firmeza no que dizia e uma autoridade tal que a fazia seguir o comando de sua voz sem hesitar. A fumaça subia rápida pela escada e como a sombra da noite já apontava no topo, lançando seus tentáculos gasosos por todos os lados. Manter a calma seria a primeira coisa a fazer, em seguida teria que pegar Milca no quarto conjugado com o da mãe.
Correu pelo curto corredor até a porta. Milca ainda dormia, mas a fumaça já provocava tosses na menina. Vera olhou pela janela a fim de ver a altura, mas naquela parte da casa era impossível pular; havia muitas madeiras velhas e algumas pontiagudas que certamente poderia feri-las fatalmente.
Pegou então um cobertor fino e enrolou a pequena o melhor que pode, tentando proteger nariz e boca para que ela não inalasse a fumaça amarga que tomava sutilmente conta dos cômodos.
Tentou ir pelo quarto de Joana, mas à porta viu que já havia labaredas chegando muito perto da porta. O desespero quis tomar conta de sua mente, mas sua irmã dependia dela. Os gritos de sua mãe eram cada vez mais desesperadores.
Então lembrou que a janela do banheiro, embora mais estreita que as demais, era antiga e muito mais larga que os padrões atuais, portanto tinha uma passagem suficiente para que ambas passassem. Não ouvia sirenes por perto, então deduziu que ainda não havia chegado os bombeiros. Correu para o banheiro e fechou a porta, encostando a cabeça na porta enquanto tentava acalmar seus pensamentos, respirou lentamente para baixar seus batimentos cardíacos que retumbavam em seu peito.
– Certo. Calma. Vai dar tudo certo. – o sangue disparava em suas veias como cavalos de corrida. Sentia que suas pernas tremiam, sua garganta e olhos começavam a arder e Milca, que havia acordado, chorava agora enquanto esfregava os olhos, que se tornavam avermelhados. Estava assustada.
Logo abaixo da janela do banheiro havia um patamar onde antes tinha sido uma sacada. Após a reforma, fecharam e transformaram num banheiro, mas tinham deixado não se sabe por que, aquele pequeno patamar, provavelmente para ser demolido depois. Estava com os tijolos quebrados pela ação do tempo, mas Vera não tinha outra opção.
– Vão ter que agüentar. – ela disse. E colocando Milca sobre a bancada da pia, subiu na janela e com um pequeno esforço passou por ela. – Querida, vem com a Vera. – disse para a irmã que agora, extremamente assustada, chorava ainda mais alto.
Atraída pelo choro da pequena, Raquel correu até aquela parte da casa, e agora, acompanhada de Joana e Sofia, gritava aflita para que a filha tomasse cuidado.
– As pedras estão soltas Vera, não vá para a beirada.
Mas o que Vera podia fazer? Não havia mais saída para ela. Voltar para dentro era impossível, já a casa estava tomada pelas labaredas. Ouvia agora o soar das sirenes do bombeiro. Tudo que precisava era pegar Milca.
– Querida vem com a Vera, vai ficar tudo bem. – mas Milca, uma criança de apenas três anos, sem entender muito do que se passava lá dentro e tossindo muito, chorava desesperadamente. Vera temia que aquela fumaça fizesse sua irmã desmaiar, pois seria ainda mais difícil tirá-la de lá. Labaredas já entravam por baixo da porta.
– Querida, segure nas mãos da Vera, tudo bem? – Ficando nas pontas dos pés, Vera conseguiu segurar nas mãozinhas de Milca. – Isso, agora eu vou te puxar e você vai segurar no meu pescoço, “ta bom”? – entre soluços e lágrimas, Milca balançou a cabeça em afirmativa, Vera a puxou e ela se agarrou no pescoço com força.
Delicadamente Vera a puxou, mas quando ela passou pela janela alguns blocos se desprenderam e Vera vacilou. Os gritos de sua mãe e irmãs romperam no ar.
Respiração curta e coração batendo forte, Vera temia que um movimento a fizesse cair e também a sua irmã. Foi nesse instante que, notando algo passar pelas suas costas e bater forte contra a parede, Vera percebeu que era uma escada e que por ela, subindo rapidamente, um grande homem uniformizado subia a seu encontro. Era um bombeiro.
– Rápido, por favor. – balbuciou.
– Está tudo bem, calma, fique calma. – disse o bombeiro assim que chegou até as meninas. – Quero que se vire para mim bem devagar. –
Vera obedeceu e muito devagar, mexendo os pés vagarosamente e ainda segurando sua irmã muito forte, apertada a si, ficou de frente ao bombeiro.
– Isso. Muito bom. Vera é seu nome?
– Sim. – Vera murmurou dura feita estátua.
– Muito bem Vera, me passe primeiramente sua irmã, Ok? Primeiro a menina.
Muito devagar Vera passou para ele a irmã, que ainda chorava, mas agora não tanto
quanto antes, talvez segura de que iria para braços que a protegeria e a levaria para longe de todo aquele tormento
– Ótimo. Preciso que fique ai, segure-se firme. Vou passar sua irmã ao sargento Wilson e em seguida pegarei você.
– Aham. – ela gaguejou, temendo até mesmo falar
Muito rapidamente o bombeiro passou ao sargento a pequena Milca e questão de segundos já segurava a cintura de Vera junto a si, ajudando-a a passar para a escada.
Já no chão, abraçada pela mãe e por Sofia, Vera chorava numa mistura de soluços e murmúrios incompreensíveis. Estava muito assustada e ainda mão compreendia o que havia se passado. Num minuto havia subido para fazer sua irmã dormir e no momento seguinte a casa havia pegado fogo.
Suas penas tremiam enquanto uma atenciosa agente do corpo de bombeiros colocava sobre seus ombros uma manta e em seguida a guiava para uma ambulância.
***
A casa havia sido consumida fatalmente consumida pelas labaredas, que lamberam cada centímetro quadrado do que havia sido um lar feliz repleto de recordações de uma família que sempre foi muito unida, e lutou para que assim permanecesse mesmo depois que a morte implacavelmente levou o amado pai e marido.
Não havia o que salvar agora. Tudo havia sido reduzido a cinzas, inclusive as recordações, ao menos as que estavam impressas em papel, porque as que estavam no coração, gravadas, nunca seriam apagadas.
Raquel e as filhas foram amparadas pela família de Sarah, amiga de Vera, mas a verdade é que estavam sem um lar para chamar de seu. Raquel não tinha mais a casa que morou com a família desde que se casara com Marcos. E quando ele faleceu naquele trágico acidente, achou que não conseguiria sobreviver. Mas reagiu. Fez isso pelas filhas e agora elas eram tudo o que lhe restara.
Raquel tinha seu emprego, é verdade, e um pouco de economias que ela e o marido fizeram ao longo da vida de casados, embora não fosse suficiente para comprar uma nova casa. Mas não poderia viver na casa da família de Sarah.
Foram muito gentis em ceder o único quarto vago para que ela e suas filhas ficassem, mas sabia que não era definitivo. Teria que instalar suas filhas em outro lugar e não poderia demorar.
Portanto Raquel tomou uma decisão. Por mais que lhe doesse e fosse contra seus princípios, uma vez que jurara a si mesma que jamais lhe pediria ajuda ou algo do gênero, era de suas filhas que ela estava falando, e não poria em jogo a estabilidade e conforto delas por uma questão que lhe ferira tanto no passado. Era hora de olhar para frente.
– Falei com minha tia Gertrudes. – falou certa manhã, após reunir as filhas no quarto. Joana e Vera se entreolharam. Sabiam da separação entre as duas e a causa disso. Sabiam que a mãe jamais recorreria á tia se não fosse uma causa excepcional; e não era essa a causa? – É eu sei. Disse mil vezes que nunca pediria ajuda a ela, mesmo...  Aliás, principalmente depois que o pai de vocês faleceu. – Raquel se levantou e andou pelo quarto, retendo o olhar demoradamente nas próprias mãos, enquanto as filhas esperavam ansiosas pela continuação, com exceção de Milca que, brincando com Ilma, mãe de Sarah, distraia-se no antigo balanço da amiga de Vera. Colocou as mãos na parte baixa das costas e bufou. – A questão é que agora tudo mudou. Não temos mais casa e, vocês sabem, não podemos ficar para sempre aqui.
– Eu gosto daqui. – respondeu Sofia na ingenuidade de seus sete anos.
Raquel passou as mãos pelas têmporas e olhou firme para a filha.
– Eu sei, eu também gosto. Ilma tem sido ótima e nos recebeu muito bem, mas... – a mãe agora se sentou na beirada da cama onde estava Sofia e tomou a mãozinha da filha nas mãos. – Mas nós não podemos ficar aqui pra sempre. Essa não é a nossa casa. É a casa deles. Raquel virou o rosto para o lado. Não queria que as filhas vissem que seus olhos estavam úmidos.
Vera, que até então estava calada encostada na janela vendo a pequena Milca brincando no quintal com Ilma, disse:
– Nós estamos com você mãe. O que quer que a gente faça?
– Quero que vocês vão para a casa da tia avó de vocês. – Disse de uma vez, sem rodeios.
Aquilo caiu como uma bomba sobre as meninas. Ir para a casa da tia? Aquela velha solteirona esticada e magra feito um pau que até um dia atrás a mãe jamais concebera a idéia de sequer ir visitar?
Durantes vários segundos o silêncio foi brutal. Não acreditavam que haviam escutado aquilo direito e Vera chegou a pensar que não o escutara.
– Mas mãe, a tia Gertrudes é uma velha feia. – Sofia quebrou o silêncio, e Raquel foi a única que sorriu, forçosamente.
– Querida não fale assim, sabe que não é gentil.
– Ela é repugnante. E odiava o papai. – Joana reclamou após se recompor do baque.
– Joana! – a mãe a corrigiu severamente, embora não discordasse de todo.
– Joana tem razão. – exclamou Vera, por fim. – Ela odiava o papai, você mesmo disse isso pra gente.
Joana, encorajada pela irmã ter lhe dado razão, prosseguiu.
– Mãe, eu só vi tia Gertrudes três vezes na vida, e duas foram depois que papai morreu, quando ela veio pela primeira vez até nossa casa, você mesmo disse que preferia que ela não viesse.
– É eu sei. E disse a verdade – Raquel concordou
– Então porque agora quer nos mandar pra ela? – Essas últimas palavras foram ditas um pouco altas demais, o que dizia que Joana estava magoada, chateada e com muita raiva.
Uma lágrima desceu pelo rosto de Raquel, e Vera caminhou até sua mãe e a abraçou.
– O que quer que a gente faça? – a pergunta era sincera; realmente Vera queria saber a solução que a mãe tinha para elas e sabia que qualquer que fosse, seria a melhor. – Quer dizer, você disse que nós teremos que ir para a casa de tia Gertrudes, mas... Está nos dizendo que não irá com a gente?
– Não posso. – sabia que as filhas não iriam aceitar, mas era a única solução. – Vera, sabe que meu trabalho está aqui, não posso largá-lo, principalmente agora. Como irei sustentar vocês e...
– Vai abandonar a gente? – Milca estava com os olhos cheios d’água e fazendo aquele beicinho tremido de quando ia chorar.
– Claro que não, amor. – Vera pegou a filha no colo e secou seus olhos com os polegares. – Sabe que nunca faria isso. É só por uns tempos. – em seguida sorriu e, puxando as filhas para junto de si, completou – Prometo que será divertido.
Raquel estava triste e decepcionada tanto quanto as filhas, mas agora que haviam perdido tudo, as garotas precisariam de um lar em que elas estivessem em segurança e conforto e, apesar das desavenças com tia Gertrudes, não havia outra pessoa em que poderia confiar. 


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