Soberana - A Ascensão da Rainha de Marte


Kássia Monteiro
Soberana - A Ascensão da Rainha de Marte



PRÓLOGO

Talvez você já tenha ouvido falar da Via Láctea, uma das bilhões de galáxias que compõem este universo, e de um certo sistema solar que faz parte dela. Nada relevante em termos universais,  é verdade, mas imprescindível para determinados seres. Para os habitantes de dois planetas, em especial. O primeiro azul, farto em florestas e oceanos. O outro desértico, coberto de areia vermelha e imerso em uma atmosfera constituída 95% por dióxido de carbono (CO2 ou gás carbônico, para os íntimos).

As coisas nem sempre foram assim, no entanto. Há alguns milhares de anos, este planeta tinha tanta vida quanto o azul. A atmosfera era mais espessa e formada por uma composição diferente de gases, ainda existia água debaixo da superfície e diversas criaturas caminhavam pelas dunas.
A base da cadeia alimentar eram os tatuzinhos de areia vermelha. Eles tinham a capacidade de captar a luz do sol e transformá-la em íons de ferro, que ficavam aglomerados em pequenas bolinhas (seus cocôs). Essas bolinhas (e os próprios tatuzinhos) serviam de alimento para insetos como os besouros de asa preta ou os admiráveis luminários pisca-pisca, um tipo de vaga-lume que emitia uma luz verde. A partir daí, a teia era indefinível. Cabe frisar que os vegetais, mirrados e escassos, não entravam na cadeia alimentar em nenhum nível trófico, sendo apenas aperitivos que iam direto para o bolo fecal.

As vitaminas vinham de pequenos crustáceos, como o camarão-chato e o caranguejo azul do Planalto da Síria, que, obviamente, não viviam no mar. No topo da cadeia, destacavam-se grupos de seres racionais, os maiores responsáveis pela quase extinção da onça de cauda curta e do pardalzinho da Fossa Tântalo, ricos em proteína e gordura. Além deles, havia muitos outros animais interessantes, como o grande dragão da Planície Amazonas. Tratava-se de um réptil gigantesco – com cerca de quinze metros de comprimento –, que não cuspia fogo, mas uma gosma pegajosa excelente para caçar os ratões do Monte Olimpo. Estes costumavam descer de seu precioso monte à época da reprodução, já que a planície era um lugar muito melhor para acasalar e criar os filhotes, e era aí que o grande dragão agradecia aos deuses do Monte do Pavão pela mesa farta.

Os humanos que habitavam Marte – esse é o nome do planeta vermelho –, não tinham certeza se a história dos deuses era lenda ou fato. Na verdade, a maioria deles acreditava também em um tal de Jesus Cristo, que parece ter passado por lá com uma mensagem de amor e paz. Por via das dúvidas, em algumas regiões, todos os dias, às cinco da tarde, onde quer que estivessem, os devotos voltavam-se para o Monte do Pavão e repetiam as rezas ancestrais, que vinham sendo passadas de geração em geração pelos últimos cinquenta mil anos:

 Primeira Reza Ancestral aos Deuses do Monte do Pavão

Ó, poderosos deuses do Monte do Pavão
Que de cima tudo enxergam
Que do alto observam nossas falhas
Perdoem nossos pecados
Para que no post-mortem
Vivamos em plena harmonia
Com as vidas passadas.
 Ainda é uma incógnita o uso da língua morta terráquea “latim” nas rezas ancestrais dos humanos de Marte, o que pode remontar a uma origem comum.

 Segunda Reza Ancestral aos Deuses do Monte do Pavão

 Protegei os humanos do mundo
Ó poderosos deuses do Monte do Pavão
Livrai-nos dos males dos seres excomungados
Por vós de nosso convívio.
Que aqueles que foram banidos
Jamais possam voltar.
Guardai-nos, ó poderosos deuses
E guiai-nos no caminho do bem.
Amém.
Cabem aqui dois comentários. Primeiro, é óbvio que eles se referem a Marte quando dizem “mundo”. Segundo:
 Os seres banidos
 Eles eram os verdadeiros donos de Marte. Existiam desde a época em que a água na superfície não estava completamente congelada e o solo era mais do que apenas um pó vermelho. Constituíam-se sobretudo de três raças: os serpentinos, os caracolianos e os estrelatos. Todos competitivos e dotados de intelecto.
Viveram por muitos anos em harmonia com os humanos, compartilhando tarefas e a vida social, até que, em uma edição dos Jogos dos Povos, os humanos foram brutalmente esmagados. Alguns deles, inconformados, resolveram encontrar explicações para o fato e acabaram chegando à conclusão de que tinham perdido porque eram superiores. Sim, os humanos eram a raça mais apurada, a mais simétrica e perfeita. Diversos homens e mulheres se reuniram para estudar as diferenças entre os humanos e as outras raças e traçar um panorama das características que os faziam superiores.
Capturaram alguns exemplares de cada povo e, após muita observação, concluíram que os humanos não tinham a pele escamosa e dura dos serpentinos, apresentando uma cútis macia e agradável, infinitamente superior. Seus olhos não eram saltados da face e eles não deixavam uma gosma pegajosa por onde passavam, ao contrário dos caracolianos. Além disso, seu par de bem torneadas pernas era muito mais eficiente do que os milhares de pés dos estrelatos, agora considerados aberrações. Não tinham sido bem sucedidos no salto com bastão nem no lançamento de magnetita, é claro, mas porque sua função era, sobretudo, a de pensar. Os serviços braçais não eram para os humanos, eles deviam governar.
 Após a publicação dos estudos, alguns regentes marcianos decidiram que as teorias da superioridade humana estavam corretas. Resolveram, então, não mais dividir seu espaço e recursos naturais com a escória que eram as outras raças. Afinal, os humanos eram melhores e precisavam de um espaço vital, livre de aberrações, para continuarem sua expansão e dominação sobre os inferiores.
Pouco tempo depois, várias comunidades serpentinas sumiram do mapa, no que ficou conhecido como “A Grande Guerra das Serpentes”. Os serpentinos eram famosos por suas boas práticas militares, no entanto eram poucos e não resistiram por muito tempo. A maioria acabou virando bolsa ou sapato, que as mulheres humanas desfilavam nos bailes. Pelo menos morreram lutando. Os caracolianos mal tiveram essa chance.
Os humanos haviam descoberto que os caracolianos, com suas peles translúcidas, eram muito sensíveis a algo chamado cloreto de sódio (ou apenas sal). Durante um dos rigorosos invernos que durou a guerra, os humanos fingiram apiedar-se dos inimigos e distribuíram cobertores impregnados com cristais do composto. Os caracolianos que resistiram foram dizimados sem piedade. E então chegou a vez dos estrelatos, seres com cinco braços e milhares de pezinhos. Eles até formaram grandes exércitos para combater os humanos, mas falharam miseravelmente. E assim, os remanescentes dessas três raças foram confinados em campos de concentração às margens dos reinos, onde realizavam trabalhos forçados para sustentar a supremacia humana.
As outras raças, com muito menos representantes e sem espírito bélico, não ofereceram resistência. Acabaram aceitando ficar resumidas a algumas reservas ambientais.
 Breve comentário sobre as outras raças de Marte
 Eram os magnetos, férreos, magmáticos e holdenos. Os holdenos são conhecidos na Terra como “ETs" ou "deuses astronautas". Certa vez, um grupo deles conseguiu fugir de uma das reservas e retornar a Holden, sua terra natal. De lá, não se sabe como, alguns entraram em órbita. Talvez tenham sido carregados por um meteoro ou uma tempestade de poeira. O fato é que conseguiram sair do campo de atração de Marte e chegar ao da Terra. Foram incinerados ao entrar na atmosfera, mas, por sua constituição química, caíram bastante conservados. Eram inofensivos, sobretudo quando mortos, mas só a ideia de que existiam já foi o bastante para causar pânico entre os facilmente desesperáveis humanos terráqueos.
Alguns holdenos ficaram presos em largos blocos de gelo e chegaram vivos à Terra. Sem poderem retornar a Marte e no pouco tempo que conseguiram sobreviver no planeta azul, ensinaram aos povos que encontraram pela frente algumas das técnicas de construção disponíveis em Marte. Há registros claros do trabalho destes holdenos em peças do antigo Egito e em civilizações pré-colombianas.

Houve reinos que consideraram essa história de superioridade humana uma grande besteira e continuaram a viver em paz entre todas as raças. Até emitiram uma bula ou outra discordando desta postura preconceituosa e dizendo que tudo aquilo muito os aborrecia. É verdade que, apesar disso, nunca passaram para uma ação mais efetiva. Afinal, o problema não era deles. Tinham feito sua parte ao dizer que condenavam aquelas atitudes.
Enquanto isso, os exércitos humanos dos reinos segregacionistas continuavam galgando vitórias. Acreditava-se, à época das grandes guerras, que eles tinham a ajuda dos tais deuses do Monte do Pavão. Eis a origem da tradição de rezar para eles, mais especificamente às cinco da tarde: esta foi a hora em que o grande general humano Myr Ariolas invadiu e tomou a primeira vila serpentina. Em pronunciamento aos guerreiros humanos, ele disse que se havia voltado para o monte e pedido a ajuda dos deuses que moravam lá. Até esse momento, Myr era a única pessoa a conhecer a história. Provavelmente a tenha inventado para motivar os exércitos. O fato é que a mania pegou e, daí para diante, rezar para os deuses do Monte do Pavão tornou-se hábito entre os humanos de Marte.
 Os Humanos de Marte
 Como todos os seres vivos do planeta, sua constituição era adaptada à baixa gravidade e às temperaturas extremas do ambiente marciano. Comparados aos humanos terráqueos, tinham ossos mais robustos e pulmões maiores. Além disso, por viverem em um meio com baixa oferta de água, excretavam ácido úrico.
Como já foi dito, a história dos humanos sobre o planeta remontava a aproximadamente cinquenta mil anos. E, como também foi dito, em alguns reinos fora instaurada a ditadura humana e a exploração das agora chamadas “raças menores”. Ficaremos por enquanto com o reino de Arcádia, um dos mais antigos recanto segregacionista, cravado no centro da planície homônima.

O primeiro rei de Arcádia foi o general Myr Ariolas, aquele mesmo do qual já falamos. Chamou-se Myr I e não fez muito além de conquistar terras, matar inimigos e criar a lenda dos deuses do Monte do Pavão. Morreu aos quarenta e três anos marcianos[1], vitimado por uma terrível gripe.

O próximo a assumir o trono foi seu filho, Palermo, o Louco. Ele impôs tributos absurdos, no que ficou conhecido como “As Leis Inadmissíveis de Palermo, o Louco”. Um dos tributos chamava-se “Faça-me feliz” e instituía que a primeira noite da noiva de um súdito deveria ser com o rei. Palermo acabou morrendo de um súbito mau funcionamento no coração, causado por uma facada na aorta. Aparentemente uma das noivas dos súditos não gostou nada da ideia de passar a noite de núpcias com o rei desvairado e resolveu pôr fim àquela palhaçada, o que encerrou também a curta dinastia dos Ariolas.
            Na linha de sucessão estava Eugênio José, ou Eugênio I. Sob seu reinado, os humanos experimentaram grande desenvolvimento nas técnicas de construção civil e exploração de áreas inóspitas. Foi uma época dourada, de grandes expedições e descobertas. Os descendentes de Eugênio governaram por mais de mil anos, mas a festa acabou de repente, com a morte prematura de todos os herdeiros. Vítimas, também, de uma gripe.
 [1]O ano marciano tem a duração aproximada de dois anos terrestres, de modo que Myr já era um senhor bem idoso quando faleceu.

 A Gripe
 A gripe era uma doença misteriosa para os marcianos, que desconheciam os seres microscópicos. Eles só sabiam que era preciso manter distância dos infectados. Durante surtos da enfermidade, era comum isolarem os doentes em comunidades terapêuticas servidas por escravos de outras raças, a fim de evitar que mais humanos fossem contaminados. Escravos que, é claro, eram eliminados assim que terminavam o serviço.
A gripe teve grande participação na história política de Arcádia. Trinta e seis das cento e duas dinastias que governaram a planície foram extintas por este mal.
Avancemos agora para o ano 512 p.G.S. (pós Guerra das Serpentes). A dinastia dominante em Arcádia era a dos Arcandoff e eles estavam no meio de uma grande encrenca. Primeiro porque o rei, Micanor Arcandoff Angelus Angélicus, ou Micanor III, estava gripado. Segundo, porque sua esposa também estava. Terceiro, porque sua única herdeira era uma menina de seis anos de idade. E quarto, porque holdenos, magnetos, férreos, magmáticos, serpentinos, caracolianos, estrelatos e demais raças, apesar das péssimas condições em que viviam, tinham se reproduzido freneticamente nos últimos anos.

PARTE 1 – CAPÍTULO 1

–  Serpentinos, estrelatos e caracolianos – repetiu Liarlinde pela vigésima oitava vez, apenas naquela aula – compõem o Eixo do Mal. São os nossos maiores inimigos, os rebeldes que só mantemos pacificados à força.
–  E por que fazemos isso?
–  Porque são inferiores e não sabem o que é melhor para eles.
–  Nunca se esqueça disso, princesa.
Empírico Opus, o conselheiro e tutor real, retomou então, pela vigésima nona vez, uma monólogo sobre as diferenças físicas entre as raças, que provavam a superioridade dos humanos. Ele adorava esse tema.
Liarlinde, a princesa herdeira de Arcádia, já tinha o roteiro das aulas de cor. Em breve o velho começaria a expor os termos da Bula Segregatus, documento que ele redigira anos antes e do qual muito se orgulhava. Depois, explicaria como aquele papiro abençoado havia salvado vidas, colocando enfim as raças menores onde mereciam. É claro que a segregação já existia antes da outorga da Bula, mas aquele documento servira como o ponto final em matéria de supremacia humana. Alguns de seus termos instituíam punições severas para crimes como deixar os campos de concentração sem licença prévia, recusar-se a louvar os deuses do Monte do Pavão e caçar para comer, afinal os escravos eram mantidos em uma dieta limitada e não muito nutritiva que garantia poucas rebeliões. Liarlinde tinha memorizado tudo isso havia muito tempo e não estava com paciência para a conversa repetitiva de Empírico naquela hora, o que era bastante compreensível.
Fazia dias que os pais dela estavam isolados nos aposentos reais e a menina nunca era autorizada a vê-los. Havia o risco de que ela pegasse a maldita gripe, tragédia que representaria o fim do reinado dos Arcandoff. E, claro, esse não era o desejo de nenhum humano de Arcádia. A História mostrava que, ao fim de cada dinastia, impreterivelmente, havia problemas de sucessão. Era uma ideia diferente da outra, as duas querendo se impor em vez de trabalharem juntas pelo bem comum, e isso sempre acabava em guerras sangrentas.
– Agora escreva uma redação explicando por que os caracolianos mereceram aqueles cobertores com sal – orientou Empírico, passando a Liarlinde uma folha de couro e uma pena de patinho-pedreira, aqueles patos azuis que, após a cópula, pulam do abismo mais próximo.
– Eu já fiz uma igualzinha anteontem, Empírico – redarguiu a menina. – Você pode ler aquela.
Enquanto a princesa caminhava, com sua altivez habitual, até a porta da sala de estudos, Empírico curvou-se, respeitoso. O conselheiro era um monarquista devotado, adorava achar que fazia parte dos rumos de Arcádia, mas não passava de um velho muito magro que andava envolto em sua túnica branca e carregava um cajado para lá e para cá. Ele dizia ser o cajado da sabedoria, uma relíquia de família passada de geração em geração de conselheiros. Na verdade, o objeto era apenas uma bengala elaborada, já que o velho tinha os joelhos estourados de tanto rezar aos deuses do Monte do Pavão e fazer reverências exageradas à família real.
Liarlinde percorreu o pátio do palácio em silêncio e o único som que se ouvia por ali eram os passos dela em direção à arena de jogos. Fazia frio, uma fina neve carbônica despencava do céu, mas a princesa não se importava. Não havia nada de que ela gostasse mais do que jogar e, de qualquer forma, estava com a cabeça tão cheia de problemas que não seria uma nevezinha a incomodá-la.
Quando Guer surgiu na arena, com o olhar desafiador e o sorriso torto de sempre, a menina empertigou-se, desdenhosa.
– Pronto para perder, noivinho?
–  Isso é o que veremos.
  Liarlinde e Guer tinham, respectivamente, seis e sete anos marcianos de idade, o que, para humanos terráqueos, corresponderia a cerca de doze e treze anos. Eles estavam noivos. O garoto era filho de Lut Vallunda, chefe da guarda real, o posto mais alto depois dos próprios reis, e da princesa, é claro. A união fora sugerida por Empírico Opus quando Liarlinde tinha apenas três anos. “É melhor garantirmos a união de Liarlinde com alguém de uma família honrada e próspera. E, o mais importante, uma família devota e segregacionista como os Arcandoff. Nunca poderemos ter certeza da fidelidade absoluta de outros reinos, eles podem acabar sucumbindo às pressões externas e não implantando a preciosa Bula que nos mantém em paz”, dissera Empírico ao pai da menina. “Sugiro a união da princesa ao jovem Guer Emanuel Vallunda, filho de Lut, nosso chefe da guarda. Ele é um bravo guerreirinho, as crianças são amigas e, quando o momento chegar, certamente gerarão belos herdeiros para o trono de Arcádia. Além do mais, Lut prometeu empenhar-se em nossa cruzada pela implantação da Bula Segregatus em outros reinos. Ele tem excelentes ligações militares... Devo dar início aos procedimentos, meu rei?”. Micanor, muito entretido na leitura de um papiro de comédias, respondeu com um aceno. Empírico entendeu o gesto como um sim, de forma que se deu o noivado.

O noivado de Liarlinde e Guer
 A cerimônia foi no salão nobre do palácio e contou com a presença dos membros mais importantes do reino. Liarlinde estava linda em um vestido verde que combinava com seus olhos sagazes, ao passo que Guer trazia uma espada sem fio e um traje marcial, como um verdadeiro soldadinho. Depois que Empírico proferiu as palavras que selaram o destino dos dois para sempre, jurando-os prometidos um a outro e a mais ninguém sob os olhos dos deuses, as crianças passaram o resto da noite brincando de caçar raças menores. Os adultos achavam tudo uma graça.
Enquanto cresciam, os noivos desenvolveram uma sólida amizade. Passavam quase todas as tardes juntos, depois das aulas, explorando os limites do palácio ou escapando para a beira de algum lago congelado. Guer ensinava à amiga os golpes de espada que aprendia com a guarda real e ela contava a ele um pouco da história política marciana e das vantagens da Bula Segregatus. Às vezes os dois corriam até algum campo de concentração e faziam piadas com os escravos enquanto se gabavam de sua beleza e superioridade.
De fato, Liarlinde era uma das coisinhas mais graciosas que o reino já vira. Cabelos negros que caíam em ondas perfeitas sobre os ombros de uma pele alva e macia, olhos verdes brilhantes, lábios avermelhados. E Guer era um belo exemplar do sexo masculino, com sua cútis morena de sol, sua força e sua coragem. Era, também, um exímio desenhista e tinha na amiga sua musa inspiradora. A menina não sabia, mas os aposentos do garoto eram cobertos de desenhos dela. Formariam um casal bonito, algum dia. No momento, porém, ambos estavam mais preocupados com quantos pontos podiam evitar que o outro fizesse no “batalha almofada”.

 O jogo batalha almofada
Era o jogo mais comum em Marte, a estrela dos Jogos dos Povos, quando eles existiam. Ainda havia um grande campeonato a cada dois anos marcianos entre os reinos segregacionistas, do qual as raças menores não participavam, é claro, a não ser como gandulas.
Batalha almofada era simples, porém muito divertido. Em uma arena circular, havia dois bancos, onde os jogadores se sentavam de frente um para o outro. Cada um tinha direito a duas almofadas. O objetivo era arremessá-las de forma a acertar o rosto do oponente. Este era o único lugar em que se marcavam pontos. Ganhava quem chegasse ao décimo ponto primeiro.
As partidas eram rápidas e intensas. Eventualmente as almofadas caíam no chão, e era aí que estava o ponto alto do jogo. Em meio ao perigo de uma almofadada no rosto, o jogador precisava se abaixar para pegar a que estava caída a fim de tentar acertar seu oponente com ela.
Cabe dizer que Liarlinde nunca perderia, se não quisesse, no entanto deixava Guer achar que havia ganhado. Era da vontade dela que ele continuasse vindo vê-la, sobretudo naqueles dias sombrios.
 –  Um, dois, já! – gritou Liarlinde, e logo voavam almofadas pela arena.
Choviam também provocações de todos os tipos e os dois pré-adolescentes corriam, gritavam e suavam. Meia hora depois, após três vitórias de Guer contra duas de Liarlinde, os dois caíram exaustos, lado a lado, admirando o pôr do sol marciano em seus tons de azul. Geralmente o céu era avermelhado e poeirento, mas, quando o sol se punha, o planeta era tomado por aquela tonalidade serena. Era a hora preferida de Guer.
–  E aí, como os seus pais estão? – perguntou o garoto, ainda arfando.
– Não sei. Ninguém me deixa nem chegar perto do quarto deles.
–  Quer que eu pergunte pro meu pai se ele sabe de alguma coisa?
–  Não, deixa pra lá, eles estão bem.
Guer ofereceu o braço como travesseiro para a amiga, que se aconchegou nele. Liarlinde não gostava de demonstrar suas emoções, mas era fácil, pelo menos para Guer, notar que ela estava muito preocupada.
–  Meu pai disse que há rumores entre os escravos – retomou o garoto. – Rumores de revolução.
– Besteira.
– É sério, ele falou que pode haver um levante se os seus pais morrerem. Por você ser tão nova e tudo mais. O reino precisaria de um regente e, nesse meio tempo, estaríamos sem um comandante de verdade... Os nossos soldados têm treinado todos os dias, você não percebeu?
Liarlinde revirou os olhos, mas se encolheu um pouco mais contra o amigo.
– Os escravos são inferiores, Guer. Eles não têm cérebro suficiente pra armar um levante. Pergunte ao Empírico, ele fala sobre isso todos os dias naquelas aulas insuportáveis dele. Além do mais, eu já disse, meus pais estão bem. É só uma gripezinha.
Guer respirou fundo e não disse mais nada. Limitou-se a apertar Liarlinde nos braços e cheirar seus cabelos. Fazia algum tempo que isso vinha lhe trazendo um prazer imenso. Ter a amiga pertinho, aconchegar-se a ela. A depender dele, permaneceriam ali pelos próximos séculos. Já Liarlinde, embora também adorasse a intimidade, estava com a cabeça em outro lugar.
A menina ficou de pé num salto e ajudou o amigo a se levantar. Os dois caminharam em silêncio até uma gruta próxima ao castelo, que servia de entrada para um lago subterrâneo. Ali, debaixo do chão, onde água não estava congelada, eles podiam nadar e se livrar do suor do jogo. Liarlinde não se aventurou de imediato pelo lago gelado. Apenas sentou-se à beira e mergulhou os pés, movimento que Guer imitou. Só se ouviam as gotas pingando do teto da gruta.
– Guer – murmurou a princesa mantendo os olhos fixos na superfície espelhada. – Você é o meu melhor amigo. Eu sei que todo mundo mente pra mim, mas eu confio em você. Me diz com sinceridade, você acha que eles vão morrer?
Um nó formou-se na garganta do garoto. Tinha uma opinião formada sobre a saúde dos reis, especialmente pelo aumento dos exercícios militares que vinha notando. No entanto, por mais que odiasse mentir para a amiga, seria incapaz de confessar a ela o que pensava.
–  Ora – disse com cuidado. – Você mesma falou, é só uma gripezinha.
– É, só que...
A menina ainda permaneceu com os olhos vidrados por longos minutos. Guer não sabia como agir. Tinha vontade de abraçá-la e tirar dela toda a tristeza, mas sabia que era impossível. Se fosse seu pai em um leito de morte, ele estaria preocupado, não estaria? Quando por fim tomou coragem para aproximar-se da amiga, viu que Liarlinde mudara subitamente de semblante.
–  Você tem razão, Guer – disse a garota. E, em um grito animado, acrescentou – O último a entrar na água é um holdeno!
Antes que o menino pudesse se levantar, Liarlinde já tinha se despido e mergulhava nas águas frias do lago subterrâneo.¬¬¬¬


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