Travessia de Daleth


J. Furia
Travessia de Daleth


AVISO AO LEITOR

Todos os nomes dessa (h)estória são fictícios e os que aqui irá encontrar, foram escolhidos entre nominações nossas que ou se adequam, ou de já tão proferidos os identificam. Quaisquer semelhanças com seres, fatos e lugares reais são mera coincidência.


Sumário

I — O Jardim (d)e Lúcifer
II — 1/4 de Deus
III — No Sheol
IV — Prothas
V — Ekanta, a ala de Deus
VI — Tefnants
VII — 2/4 de Deus
VIII — Thmé
IX — 3/4 de Deus
X — ...da Guarda na Terra
XI — Darbas
XII — 4/4 de Deus
XIII — A volta do Zrî
XIV — 5/4 de Deus
XV — Hóstia nos fornos de Athanor
XVI — 6/4 de Deus
XVII — Réquiem catecúmeno
XVIII — 7/4 de Deus
XIX — Batismo dos filhos de Deus
XX — 8/4 de Deus

I
O Jardim (d)e Lúcifer


O Jardim é circundado por arbustos espinhosos que se emaranharam, formando um muro com uma única brecha, a larga passagem que dá direto na avenida principal.
Poucas criaturas circulavam pela cidade principal de Cant de Ceu e, mesmo assim, apenas com a licença de Deus, por isso, nunca ninguém pensou que seria perigoso para o Jardim.
Dentro do Jardim vivem insetos e pássaros que nunca deixam de cumprir a função que Deus lhes deu, a polinização... O resultado é uma profusão de cores e diversidade de espécies que deliciavam e encantavam Deus. Os simorghs e as quimeras eram seus guardiões, os muluk-taus, seus vigias. E os qedoshins, os aions que cuidam das flores, arbustos, gramados, folhagens, mudas, trepadeiras, carramanchões, árvores... e, entre elas, Gaokerena, Gogard e Zampun, conhecidas como Árvore da Vida. Dizem que Deus as cultivou desde a semente e acreditam serem as mais antigas do Jardim, ou mais antiga, como Deus numerava. E os aions não sabem ao certo.
Assim como poucos aions, além dos qedoshins, sabiam que o Jardim não era apenas um viveiro de plantas e animais, mas uma passagem de novas criações... um berçário colorido.
E se tem algo mais naquele Jardim...

Toda manhã, Deus dirigia-Se ao Jardim para refazer-Se de Seus sonhos.
Lá não Lhe importavam as decepções, deformidades, monstruosidades, discussões.
O Jardim era sempre perfeito. Sua harmonia no tempo, espaço e seres era única.
É claro que, graças ao trabalho dos qedoshins controlando o sistema de irrigação, cuidando do solo... até recolhiam as folhas que caíam e frutos antes que se desfizessem, levando-os para grandes valas de compostagem em Asrob, onde passariam por um processo de transformação, muito bonito por sinal. Eles também mantinham as alamedas, os passeios, pergolados, bebedouros para os pássaros, colmeias, o Seu lago, Saras com Sua ilha e Suas três árvores... da Vida.
O Jardim era o refúgio de Deus e os qedoshins sabiam, todos aions sabiam.
Era tão precioso que ninguém precisava ficar postado na sua entrada porque os qedoshins, e até mesmo Deus, não acreditavam que alguém pudesse entrar no Jardim sem antes pedir Sua autorização.
Naquele tempo, era inconcebível a ideia de que alguém poderia desobedecer a Deus.
E eles tinham razão.
O que eles não pensaram era que seria justamente uma das criações de Deus, levada ao Jardim após sua concepção, como o eram todas as Suas criações, quem iria conspurcá-lo.
Cada criação divina era levada, ainda em seus primórdios, para o Jardim.
Lá ela teria seu primeiro contato com aqueles com os quais não apenas conviveria durante sua existência, mas que proveriam sua subsistência. Esse contato era transcrito por um certo qedoshin e, dessa forma, Deus sabia que, uma vez sozinha, a criatura saberia diferenciar o adequado do prejudicial, o necessário do banal para aquilo que chamamos vida.
Lembretes não existiam e as informações seriam passadas através das gerações por códigos que norteariam toda a sua existência no Planeta Azul.

A rotina seguia e foi num descanso que Deus levou ao Jardim uma criação não muito bela, aparentando ser muito frágil e, tampouco, parecia original.
Evitando que fosse vista pelos aions, Deus chegou com ela coberta por um manto, sob os olhos da noite apenas.
Não desfilou pela avenida, não a exibiu para que a conhecessem, como fazia com todas as outras.

Os aions ainda não sabem se isso ocorreu porque Deus já tinha receio daquele ser tão débil. Se foi medo ou se, talvez, só estivesse com vergonha de mostrar uma criação aquém de bela.
Talvez não soubesse ou não quisesse revelar que sua única qualidade seria sua capacidade de sobreviver acima de suas forças.
Talvez temesse que os aions reconhecessem os traços plagiados de forma um tanto grosseira.
Enfim...
Deus chegou escondido ao Jardim, procurou o Kami, o senhor dos qedoshins e ordenou que ele a ocultasse até que Ele retornasse para definir seu destino. Afinal, onde mais Deus poderia guardar Suas criações e com quem mais, senão o Kami?
E Deus foi-Se e, logo atrás, a noite.
Aurora raiou e o Kami reuniu um seleto grupo de qedoshins para receber Suas orientações frente à inusitada situação.
Deus retornou ao Jardim sob a luz do Sol Azul e dirigiu-Se à área reservada, nos arredores de Saras.
Lá, o Kami entregou-Lhe o embrulho e sob os olhos atentos dos qedoshins, Deus tirou o manto e colocou o pequeno ser sobre a relva, e ele deixou-se ficar.
Aguardaram.
E era só o que ele fazia, deixar-se ficar.
Não era necessariamente fraco, mas parecia um pão que foi tirado do forno cedo demais, ainda cru e grudento.
O Kami antevia que seu desenvolvimento para a transcrição seria pesado e lento, dependente de atenção e cuidados alheios em demasia.
Poderia ter sido prontamente descartado, mas não era a vontade de Deus, Ele quis que fosse transcrito e, foi assim que, sua fragilidade e feiura conseguiram a atenção do senhor dos qedoshins. E de tão feio que era, inchado, mole e completamente à mercê, cativou o Kami.

O Kami, sempre precavido, era o único a ter contato direto com as criações e, desta vez, para conseguir mantê-la oculta, era acompanhado por seu seleto grupo a distância, garantindo-lhe isolamento e realizando discretas adaptações no Jardim, tanto para isso, quanto para que ele conseguisse acomodar o pequeno ser.

O tempo passava.

Então Deus, sob a luz dos olhos da noite, apareceu com seu par.
Rotina. Pouquíssimas eram as criações que eram únicas, sem par, se não tivesse vindo Ele, novamente, escondido.

O Kami não O questionou, parecia-lhe que o par não iria existir, se mesmo no Jardim eles tiveram que fazer mudanças... e quando pensava nas outras criações que por ali já haviam passado... ficava preocupado. Como aquele ser, aqueles dois iriam compartilhar o espaço com os demais?
E o Kami continuava tentando.
Servia de todos os alimentos para identificar qual seria mais adequado, mas quanto mais experimentavam, menos saciados e satisfeitos se mostravam. Se ele não os encaixasse, como iria fazer sua transcrição?!
Isso deixava o Kami apreensivo, pois não tinha progresso para comunicar a Deus e Suas visitas encabulavam-no...
Então, num dyo, eles começaram a locomover-se usando de seus quatro membros.
O Kami exultou de felicidade. Estava tão cansado, mas conseguindo.
E aguardou ansioso pela visita de Deus.
Deus viu-os engatinharem e agarrarem a barra de Seu manto... não esboçou a mínima satisfação. E ordenou ao Kami que os mantivesse longe da entrada do Jardim, preservasse-os ainda dos olhares dos outros aions, resguardasse-os.
O Kami teve dúvidas quanto a quem Deus queria resguardar. E ficou com vergonha de seus pensamentos.
A situação mergulhava-o em meditações... buscando um ambiente para aquela ridícula criatura que Deus secretamente lhe entregou. Acima de tudo, ele não queria decepcionar Deus.
E foi num desses momentos de meditação que ele se distraiu e não viu quando um dos pequenos se afastou.
Ao despertar de seu transe, olhou em direção ao canteiro onde os havia colocado e viu apenas uma das criaturas. Ela estava toda enlameada e degustando o barro. Era um horror... E percebeu, apenas uma, era um desastre!
Correu ao canteiro, agarrou-a e vasculhou os arredores em busca do outro.
Por trás das plantas, um rastro de lama seguia pela alameda.
Se a que segurava estava enlameada, o outro também devia estar. Seguindo o rastro e aquela alameda...!... a entrada do Jardim.
O chão pareceu fender sob seus pés.
Veriam a criatura!
Tinha que alcançá-la e ainda esconder a outra!
Não tinha tempo.
Procurou ao redor e viu que um de seus qedoshins percebeu sua aflição e já se aproximava.
Correu a entregar-lhe a criatura e ordenou que a segurasse, e não saíssem de lá!
E voltou a correr para a alameda... a passagem... atrás do rastro.
Chegou à avenida.
Um aglomerado animado de aions em roda, pouco à frente. Seu peito começou a palpitar.
Eram kshatryas... aions guerreiros do Exército de Deus e com seu colossal Zrî, seu senhor, destacando-se por entre eles!
Aproximou-se cautelosamente.
Eles riam e pareciam cutucar algo no chão com suas espadas.
Um dos kshatryas viu-o e apontando o pequeno ser – "O que é isso?"
O Kami fitava o Zrî pelo canto de seus olhos – "O que estão fazendo?" – calmo, sem elevar o tom.
"Isso é tão feio que podia nos servir de amuleto contra os maus espíritos!" – gracejou um kshatrya.
O Kami sabia como eles desprezavam e ridicularizavam os outros aions e, tendo junto de si seu Zrî, como ficavam à vontade...
"Essa coisinha suja é algum excremento dos experimentos que você faz escondido no Jardim?" – indagou-lhe o Zrî, sorrindo com escárnio.
O peito do Kami apertou e torceu. Emudeceu. Não conseguia respirar. Estacou com os olhos congelados no Zrî. Que acusação era essa?! Sabia que não devia encará-los, mas ele o acusava! Era uma injúria e ele não conseguia falar. E o que ele iria falar? Como iria falar? Era injusto! Sentiu raiva a ponto de chorar, mas não chorou e baixou a cabeça tentando se controlar.
Ele não podia responder!
E seus olhos encontraram os olhos do pequeno ser, fitando-o.
Sentiu mais raiva. Sentiu ódio?
O pequeno esboçou o que pareceu ser um sorriso encabulado.
Eles tinham razão... como era feio!
O Kami estava inerte.
Um dos kshatryas resolveu cutucar o pequeno com a ponta do pé e apertou-o com a ponteira fria de bronzita de sua bota, logo acima de um pequeno apêndice pendente, enquanto perguntava ao Kami – "Para que serve esse antúrio enrugado em bolsa de pele aqui? Calculou errado o arremate das bordas?"
E os outros kshatryas estouraram em risos, animando-o a cutucar mais.
O pequeno estremeceu com calafrios e o enrugado de pele cresceu, enrijeceu e ergueu-se, lançando um jato de líquido amarelo e fumegante no tornozelo do kshatrya.
Primeiro, eles se assustaram e estacaram. Logo depois riam e debochavam do companheiro molhado.
A vibração histérica dos risos fez o pequeno chorar assustado.
Em reflexo, o Kami estendeu os braços para segurá-lo, mas o Zrî foi mais rápido, investindo sua espada contra o peito do Kami, a ponta da lâmina picou seu peito.
Era um primeiro aviso.
"O que é isso, qedoshin? Essa coisa sujou um dos nossos..." – olhou com desdém para o pequeno abaixo – "...e nosso chão." – e o tom do Zrî era frio. – "E de onde você tirou isso? O que é isso? Quem você pensa que é? Vamos todos procurar um confessor, qedoshin. Você vai ter de esclarecer isso."
E os kshatryas moveram-se, cercando o Kami.
"Não!" – interrompeu-os um qedoshin. – "Nós vamos levar a criatura conosco e vamos voltar para o Jardim... em paz! Esse assunto não é de vocês." – e empunhava acima dos ombros um alfanje aberto, em riste.
O Kami assustou ao vê-lo.
Onde estava a outra criatura que ele deixou aos seus cuidados?!
...Mas o alfanje aberto fez os kshatryas abrirem o cerco e o Zrî recolher sua espada.
O Kami aproveitou para agarrar o pequeno que soluçava, estendendo-lhe as mãos e os três foram recuando pela avenida de volta ao Jardim.
Os kshatryas acompanhavam-nos, mantendo uma distância segura do alcance da lâmina do alfanje.
Então surgiram, pela passagem do Jardim, outros qedoshins empunhando suas ferramentas, o que tinham.
A cena era inédita e as janelas das casas da cidade foram apinhando de curiosos aions. Alguns mais corajosos postaram-se do outro lado da avenida para poderem ver mais de perto.
O senhor dos qedoshins sentia gelar. Todos viam o pequeno ser enlameado e molhado de excreções em seus braços.
Quando os qedoshins adentraram a passagem do Jardim, o Zrî destacou-se à frente de seus kshatryas – "Vocês vão ter de explicar isso a Deus!" – ameaçou-os com a ponta da espada apontada para a face de Kami.
"Não... Vocês é que deviam pensar em como vão justificar sua covardia a Deus!" – respondeu o Kami, seguro pela verdade.
O Zrî soltou sua espada e avançou para o Kami com a mão erguida.
O tapa foi bloqueado por um forcado que interceptou seu braço no ar.
Com o braço fincado, o Zrî rosnou para o Kami – "Você esqueceu que eu sei o seu segredinho, Lúcifer" – e com um brusco puxão tomou o forcado das mãos do qedoshin, arrancou os dentes afiados de seu braço e ainda usou o forcado para erguer sua espada, antes de lançá-lo ao chão, retirando-se pela passagem com seus kshatryas.

Lúcifer se recolheu para o interior do Jardim, como se ainda pudesse proteger o pequeno dos olhares curiosos dos aions que, agora, se aglomeravam na entrada da passagem para o Jardim.
Mais adentro, escoltado por seus seletos qedoshins, viu um sair por detrás de uns arbustos, tendo a outra pequena criatura em seus braços.
Reuniram-se para entender o acontecido e decidir o que fazer.
Lúcifer explicou o incidente, de como ele se distraiu e um dos pequenos engatinhou para fora do Jardim, o encontro com os kshatryas, as acusações do Zrî.
Um instante de silêncio fez com que entendessem sua situação.
E viram que não era bom.
"Temos que chamar Deus e explicar o que houve!" – falou, por fim, um deles.
"Deus nos pôs nessa situação..." – lamentou outro.
"Mas é Sua criação, quando souber, os kshatryas vão pagar pela impertinência! Sendo Zrî ou não" – raciocinou mais um.
"Os kshatryas são uns estúpidos! Por serem a força bruta, zombam de qualquer um." – reclamou outro, referindo-se ao Kami.
"Eles têm inveja de nós. Todos sabem disso! Acham que Deus gosta mais de nós! Todos sabem disso."
"Eles têm inveja de qualquer um! Nenhum de nós tem culpa por eles serem kshatryas e levarem a vida que levam..."
E ficaram discutindo sobre o comportamento dos kshatryas, no que o exército os havia transformado, a acusação absurda e impensável do Zrî... qedoshins criando e mantendo criaturas escondidas no Jardim, por vontade própria... De como Deus agiria quando soubesse... Vangloriaram-se de como enfrentaram o Zrî e seus kshatryas e de quantos aions foram testemunhas...
O que eles não sabiam é que, não apenas os kshatryas os consideravam privilegiados e invejavam a constante presença de Deus no Jardim, atribuindo essas Suas visitas a eles, qedoshins.
E que a história deles criarem seres escondidos não foi uma invenção que podia ser atribuída ao Zrî ou um dos seus, ninguém saberia dizer quando, quem, nem onde começou, mas já tinha corrido as casas da cidade e se alastrado rio abaixo há tempos.
Lúcifer não dizia nada, estava pensativo, preocupado...
Deus confiou-lhe aquela criatura estúpida e ele ainda não tinha conseguido decifrá-la, entendê-la, prepará-la, transcrevê-la. Ela não estava pronta para habitar o Planeta Azul. Isso fez Deus escassear suas visitas, procurá-lo menos, até os qedoshins já deviam ter notado o afastamento deles dois. E manter a criatura em segredo... para preservá-la... quem Ele queria preservar?
Um calafrio eriçou as plumas amassarocadas por entre os cordões de suas asas.
E agora, rumores de que ele, o Kami, criava monstruosidades no Jardim! Sim, monstruosidades, aquele ser era horrível, bobo, esdrúxulo, inútil, pelado, sujo, grudento, chorão, estúpido, cabeçudo!
Olhava os pequenos na relva carregado de rancor.
Sentia que o surgimento daquelas criaturas, acontecesse o que acontecesse, tinha mudado sua vida para sempre.
Então notou o fundo branco nos olhos redondos, suplicantes... e como eram pequenos! Sentiu uma pontadela no peito e ficou envergonhado.
Enlaçou um em cada braço e aconchegou-os junto de si. O que era isso?! Estaria ele, afeiçoando-se a eles? Não, era dever.
Percebeu que tremiam, estavam gelados.
Na confusão, esqueceu como eles tinham frio... eram pelados e estavam cobertos de barro, agora meio seco e um deles ainda estava sujo com excretas.
Chamou seus qedoshins.
"Um de vocês traga água do lago, tenho de banhá-los. E um manto para enxugar e outro para cobri-los."
Foi quando a atenção dos qedoshins voltou-se para os seres e perceberam que eram dois, um par!
Eles tinham visto apenas um, o primeiro. Não sabiam que o Kami estava cuidando de um par...
Foi quando perceberam como seu rosto estava cansado.
Mas era o costume, o par.
E um deles saiu para buscar a água e outro para trazer mantos.
Lúcifer sentou numa pedra e apoiou os pequenos em suas coxas.
Os qedoshins se aproximaram.
"O que vamos fazer, Kami?" – perguntou, finalmente, um deles.
Os pequenos emitiam um som de seus peitos que lembrava um ronronar.
"Alguém traga comida, preciso alimentá-los" – Lúcifer ia lembrando dos cuidados, tinha esquecido por uns instantes de como eram dependentes dele. E o ronronar não parecia bom, tinha que aquecê-los.
"Que alimento, Kami?" – indagou um dos qedoshins.
Os qedoshins queriam ajudá-lo, mas não sabiam como tratá-los e muito menos o que consumiam.
"Qualquer coisa serve" – parecia que Lúcifer não se importava.
Então eles aguardaram. Acharam que seu Kami falava assim por estar fatigado.
"Eles comem qualquer coisa, qualquer coisa mesmo!" – falou Lúcifer com olhos quase espantados pela inércia dos qedoshins e, depois, com uma certa tristeza – "Só... algo macio que não tenha que ser muito mastigado. Eles não têm dentes."
Um qedoshin saiu para buscar.
Os restantes aguardavam ordens do Kami, enquanto o observavam balançar seu corpo, para frente e para trás, com os pequenos enlaçados em seus braços e os pensamentos perdidos no ar.
"Kami... e os outros qedoshins?" – perguntou um e sua voz era mansa, como se ele também estivesse embalado pelo balouçar de Lúcifer.
"Hum..." – Lúcifer tinha esquecido. – "Os outros..." – e abanou sua cabeça.
"O que diremos a eles?" – insistiu o qedoshin.
Lúcifer inspirou profundamente.
"Algum deles viu o tumulto, a confusão?"
"Acreditamos que não."
"Pelo menos, não de perto" – colocou um mais prudente.
"Algum deles viu alguma das criaturas?" – inquiriu Lúcifer.
"Achamos que não, mas... os rumores..."
"Sim" – concordou Lúcifer, interrompendo-o. – "Há já rumores..." – e após pensar um pouco. – "Não digam nada... exatamente. Deixem-nos fora disso" – e balouçava vagarosamente. – "Gostaria de poder deixá-los, também, fora disso" – e voltou seus olhos, vazios, para os qedoshins.
Eles recuaram um passo, assustados e ofendidos.
"Estamos nisso juntos, Kami! E por quê?..." – a voz do qedoshin era irritada. – "Foi ordem de Deus o segredo! E eles... " – vacilou antes de apontar para os pequenos – "... são obra de Deus...?"
Um qedoshin aguçou os olhos.
"Perdoe-me se pergunto, Kami, mas existem motivos para pensar que a acusação do Zrî seja verdadeira?" – e observava os pequenos.
"Não!" – exclamou Lúcifer, negando com todo seu corpo. – "Isso é falso! Eles não são meus, são de Deus!"
Os pequenos seres ensaiaram o que pareceu um começo de choro, assustados com o grito do Kami.
Ele percebeu. Voltou a balançar.
Os qedoshins olhavam-no tentando compreender. Estava Lúcifer ofendido?
"Eu..." – a voz de Lúcifer embargou. – "Eu não consigo arrumá-los..." – e voltou sua face para os pequenos. – "... e Deus..." – abaixando sua cabeça, sussurrando. – "... não tem vindo me ver" – a voz era quase inaudível. – "... Eu não sei o que está errado. Se sou eu, se são eles. Não sei se Deus está bravo... decepcionado... Talvez só esteja muito ocupado. Não sei por que o segredo. A minha única certeza e, nisso garanto com minha vida, é que eu nunca criei, nunca!"
Os qedoshins balançavam as cabeças abaixadas, em aceitação.
"O que diremos?" – perguntou suave um deles, voltando a face na direção das cabanas do Jardim.
"Deixem que sigam sua rotina. Nada mudou, foi apenas um mal-entendido com kshatryas ociosos procurando briga para matar o tempo" – determinou Lúcifer, notando as lanternas que já iluminavam as janelas das cabanas.
Seus qedoshins tinham razão, precisava declarar alguma satisfação.
"E se eles... questionarem..." – a voz do qedoshin era embaraçada, afinal não queria soar como acusação, apenas tentava expor a situação. – "...se valorizarem os rumores?" – e corou.
"Então, diga-lhes que Lúcifer ainda é seu Kami!" – e a face de Lúcifer descorou e seus olhos flamejaram.
O qedoshin assentiu com a cabeça e seguiu na direção das luzes das lanternas.
Os restantes sentaram próximo aos pés de Lúcifer e aguardaram.
O primeiro a retornar foi o qedoshin que trazia duas cabaças cheias de água de Saras.
Enquanto banhavam os pequenos, livrando-os do barro, Lúcifer mostrava seus corpos. Eles os seguravam e examinavam. Um dos qedoshins tamborilou com as pontas dos dedos na barriga bojuda de um dos pequenos e ele emitiu algo como um guincho com a boca bem aberta, seu corpo contorceu, todos seus membros agitaram e eles acharam que ouviram... risos!
A outra pequena criatura, enquanto eles tentavam entender o que viram e ouviram, contagiada por seu par, imitou-o.
E eles foram se imitando.
Os qedoshins divertiram-se... sorriram.
Quem diria, os pequenos riam... como eles!
Quando os três qedoshins com a comida, os mantos e o que foi dar uma satisfação aos demais retornaram, encontraram-nos fazendo os pequenos rirem.
Eles riam?!
Ouviram risos vindos de lá, era verdade, mas não pensaram que seriam aqueles monstrinhos!
E eles estavam todos agachados num semicírculo, fazendo-os rir no colo de Lúcifer que estava sentado na pedra com as pernas entrelaçadas e, para choque deles, de asas desamarradas e armadas, quase ladeando seu corpo, fazendo-o parecer um trono para os pequenos.
Pararam estupefatos com o que viram.
O Kami viu-os.
"Por que demoraram tanto? Deem-me o manto e a comida!" – e dizendo isso, levantou-se com os pequenos pendurados em seus braços.
Suas asas abriram e espreguiçaram.
Os três qedoshins estavam mudos.
Lúcifer e os outros também pararam a observá-los, intrigados.
Um deles adiantou-se e tirou o manto das mãos do outro.
Outro deles seguiu-o e pegou a comida dos braços do segundo.
E então, o terceiro que restava falou:
"Nós demoramos porque... quando cheguei lá... para explicar a situação... o ocorrido... eles dois estavam tendo que brigar pelos mantos e pela comida. Os qedoshins lá não queriam deixar levar! Não sem explicações... a respeito do que estavam ouvindo dizer, lá de fora... do acontecido na passagem do Jardim. Como não podíamos dizer muita coisa, eles nos liberaram depois que aceitamos que um deles poderia vir vê-lo..." – hesitava, havia feito um acordo sem o consentimento do Kami. – "... Eles não querem seguir a rotina sem ter a certeza de que... o Kami ainda é, de fato, Lúcifer... ou o contrário."
Lúcifer olhava-o com olhos frios.
Não estava bravo, apenas avaliava a extensão do desastre.
"Teve que lembrá-los que ainda sou seu Kami?"
"Sim" – o qedoshin encabulou. Levantou timidamente os olhos para Lúcifer, ainda tinha o qedoshin que eles escolheram para vê-lo. – "E o qedoshin... deles?"

E pronto, já não eram todos mais, só qedoshins.

"Eu não tenho que ver ninguém! Isso é um absurdo! De onde tiraram essa ideia estúpida?" – agora, sim, Lúcifer tinha se zangado e isso agitou os pequenos em seus braços.
Ele fez sinal para que os outros qedoshins os segurassem e avançou para perto dele.
Suas asas estiraram ainda mais e com uma forte batida, fez-se um sopro – "Eu sou o Kami, não tenho que aparecer a ninguém! Acima de mim, conheço apenas Deus! E apenas a Ele, a Ele, dou satisfações!" – e de tão indignado – "Se for o caso..."
O qedoshin não tinha culpa.
Assentiu com a cabeça e voltou-se para avisar que o Kami não receberia visitas. Sim, visitas. Gostou do termo. E viu um vulto postado ao lado de uma árvore, pouco à frente – "Ei!" – gritou, fazendo sinal para o vulto, mas ele correu, e o qedoshin em seu encalço.
Os outros também viram, inclusive os pequenos.
Lúcifer gesticulou que cercassem as pequenas criaturas e caminhou duro para a trilha onde sumiu seu qedoshin.
Estava cansado, foi difamado, exigiam-lhe explicações, contestavam sua autoridade e, agora, espionavam-no. Era um desaforo!...
Um vulto vinha em sua direção.
Ele parou e esperou... era seu qedoshin.
"Não consegui pegá-lo..." – arfava ainda um pouco –, "... mas acho que era o qedoshin escolhido por eles. Acho que não quis aguardar e seguiu-nos... até o Kami" – abanava a cabeça e amparava-se com as mãos apoiadas na cintura. – "O estranho foi como ele fugiu desesperado."
"O que eles estão ouvindo? O que estão sussurrando lá fora?" – Lúcifer percebeu que não era bobagem, tinha que saber o que estavam chegando de fora.
"Não nos disseram muito. Perguntavam bastante, todos juntos, mas acho que estavam nos testando. Eles ainda o respeitam, Kami, mas estão com medo..."
"Ainda me respeitam?!" – indagou irônico Lúcifer, mas o sorriso sarcástico não durou. – "O que estarão dizendo lá fora?" – e deu meia-volta na trilha para retornarem aos outros.

Eles se sentaram ao pé de uma árvore e discutiam o que fariam, quais suas possibilidades, se um deles saísse do Jardim e buscasse Deus, se Deus viesse...
Não o que diriam, porque isso era simples. Diriam a verdade. Mas como diriam?
Enquanto discutiam, um deles subiu na copa de uma árvore para vigiar os arredores, por precaução.
Não queriam mais espiões ou curiosos, principalmente com a aproximação da noite, quando ficariam às escuras.

Findou dyo.

Eles decidiram que seria melhor que um deles, ao menos, saísse e fosse ter com Deus, logo que a aurora despontasse.
Ficaram enrodilhados ao redor dos pequenos embrulhados no manto e dormindo sossegadamente aos pés de Lúcifer, sentindo-se confortavelmente alimentados, banhados e aquecidos. Alheios à vigília dos qedoshins que aguardavam ansiosamente a alvorada.
Era o tempo de descanso, mas os qedoshins estavam apreensivos e não conseguiam relaxar.
E tinham razão.
O qedoshin no alto da copa chamou e, dependurando-se num galho mais baixo, sussurrou-lhes:
"Estou vendo luzes. Acho que são lanternas... na torre de Deus!" – tinha receio em sua voz. – "E em muitas habitações... daqui, da cidade... o Sâbha..."
"O que estão fazendo? Deus... você viu Deus?!" – Lúcifer queria detalhes.
"Não sei. Acho que falando, parecem estar todos andando de um lado para o outro."
"Talvez estejam discutindo o ocorrido."
"Não podemos culpá-los. Se tivéssemos uma vela que fosse, bem provável que também a teríamos acendido, afinal, não estamos descansando mesmo!"
"Não importam os outros! Você viu Deus?" – Lúcifer estava aflito.
"Não. Vi que a torre está iluminada, está violeta" – era só o que o qedoshin podia relatar.
"As lanternas do último pavimento..." – Lúcifer estava pensativo. – "Suba! Tente ver se Deus está lá, o que está fazendo. Acha que consegue ouvir alguma coisa?"
"Não, Kami. Estamos muito longe e isolados. Apenas posso ver."
"Já está bom. Suba."
O qedoshin voltou para a copa cerrada da árvore e, tentando enxergar o que se passava na torre de Deus, teve que se esticar todo no meio dos galhos que cobriam o alto da copa. Estava difícil, quando... ele viu Deus! E, em seguida, despencou da copa.
"O que houve?!" – perguntaram assustados os qedoshins, levantando-o do chão.
"Eu vi Deus!" – e, erguido, batia fora as folhas da árvore que se enroscaram nele.
Os qedoshins ajudavam-no.
"Viu?..." – Lúcifer ficou ansioso. – "O que ele estava fazendo? Onde estava? Com quem estava?!"
O qedoshin espremeu a boca.
"Apenas O vi... depois caí."
"Volte lá! Suba! Veja o que Ele está fazendo, com quem, como, tudo! Entendeu... tudo? É muito importante!" – Lúcifer quase não conseguia se controlar, não sabia o que estava sentindo.
O qedoshin subiu o mais alto que conseguiu, mas não conseguia ver exatamente o que Deus fazia, sua janela era muito alta.
Via-O andar... parecia estar falando. Quem estaria lá?
O qedoshin achou um galho firme no alto da copa. Resolveu que serviria como um trampolim. Começou com pequenos saltos, ganhou confiança e deu impulso... subiu suficientemente no ar para enxergar pela janela do último pavimento da torre, quase frente a frente. Estava distante, era um instantâneo, mal conseguia ver.
Foi saltando.
Viu que Deus andava.
Viu que Deus estava mesmo falando.
Não conseguia ver com quem.
Não desistiu, continuou saltando e saltando e não viu que os nós dos cordões que amarravam suas asas desataram, nem viu quando suas asas abriram e, de repente, seu instantâneo ficou prolongado... ele pairou brevemente e, automaticamente, sem que ele pensasse, suas asas bateram uma ou duas vezes, levando-o mais alto e, de lá, desceu planando suavemente.
O bater das asas empurrou o ar que, numa lufada, adentrou pela janela do último pavimento da torre.
Deus sentiu e olhou.

E lá estava um dos qedoshins... planando sobre o Jardim!

O qedoshin, em pânico, recolheu suas asas e despencou das alturas para a copa e para o chão novamente.
Os outros nada viram, encobertos pela densa copa, aguardavam-no lá embaixo.
"Então?..." – perguntou Lúcifer ansioso, levantando o qedoshin.
Os olhos dele estavam congelados com o pavor.
"Eu... vi Deus!" – pausa. – "Ele falava, mas não sei o quê... nem vi com quem..." – sua face inclinou cheia de culpa.
"Bom..." – ruminou Lúcifer. – "Como Ele estava? Como... Deus parecia?"
O qedoshin desviou o olhar e mordiscou a boca.
Lúcifer insistiu.
"Qual era a expressão de Sua face?!" – estava começando a ficar impaciente. – "Parecia calma?... Séria?... Alterada?!... Como?!"
O qedoshin suspirou, contorceu um bico.
"Eu... parecia estar discursando... para alguém. Andava de um lado para o outro. Não vi com quem falava. Tentei bastante, até demais... enxergá-Lo" – seus olhos mostravam culpa.
Lúcifer aproximou-se bem, não o deixando esgueirar seus olhos. Ele tinha que explicar.
"Eu não conseguia ver, a torre é alta. Ele estava, está, no último pavimento... Queria vê-Lo melhor, ver com quem falava... e comecei... a saltar."
Lúcifer penetrava profundamente em seus olhos, mas não entendia.
"Não foi de propósito! Eu nem sei como aconteceu..." – engolia em seco –, "eu não vi quando minhas asas... soltaram..."
O Kami e seus qedoshins afastaram-se chocados.
E então notaram as asas do qedoshin soltas dos cordões, apenas encolhidas e tímidas.
"Eu... não sei fazer isso. Acho que elas fizeram sozinhas. Acho que elas se moveram! Senti vento... subi alto... planei!" – expressou uma breve felicidade na face e calou-se.
Eles não entendiam. Como?!
Silêncio.
Até que um deles:
"Você não voou, você caiu! Nós não sentimos vento, nem as folhas da árvore. Como pode achar que voou?"
Lúcifer resolveu se sentar numa pedra antes que caísse, foi quando notou que suas asas, também, ainda estavam desamarradas. Tinha soltado-as para agasalhar os pequenos e se esqueceu de amarrá-las novamente. Estava de asas abertas!
"Eu voei, foi muito rápido! O ar deslocou... numa corrente horizontal..."
E foi interrompido por Lúcifer que segurava sua cabeça entre as mãos.
"A que altura estava?!"
"O..." – sua voz sumiu, pigarreou – "... no último pavimento."
"Deus viu?" – a voz do Kami saía abafada.
"Acho que não me viu bater as asas. Só sentiu o vento e veio olhar" – pausa. – "Na verdade, Ele só me viu planando."
"Se estava planando, por que caiu da copa?" – perguntou corretamente um dos qedoshins.
"Porque também fiquei chocado e, sei lá, elas encolheram e eu despenquei!" – esforçava-se para justificar.
"Você também?..." – Lúcifer tinha-lhes voltado a face. Uma face com um sorriso sarcástico, irônico.
O qedoshin trocou olhares com os outros, mas todos esperavam sua resposta, então voltou-se para o Kami.
"Não sei se Deus entendeu, ao certo, o que aconteceu. Seus olhos estavam..." – e fez um gesto de grandeza – "... enormes... parados... em mim! E boquiaberto" – a voz esvaiu-se.
Lúcifer ria baixo.
Os qedoshins observavam-no sem compreender. Seu corpo movia-se em pequenos saltos. O Kami estava com soluços? Ria? Chorava?
"Aaarh!..." – Lúcifer anuía com a cabeça. – "Sabem do que lembrei?" – olhou-os tranquilo e jocoso. – "Aquele qedoshin... o escolhido para testemunhar a minha presença, meu comando, sei lá. Ele... tenho certeza, também viu... minhas asas. E você... Deus" – e, de repente, ficou sério. – "Nenhum de nós vai sair amanhã! Vamos ficar e aguardar. É o mais seguro agora."

Todos concordaram que manteriam os outros qedoshins fora da situação e que aguardariam a visita de Deus. Seria melhor assim.
Então eles novelaram as asas com os cordões desatados e aguardaram.
A noite passou, veio a aurora, a manhã, o meio- dyo, a tarde.
Eles aguardavam recolhidos no interior do Jardim, guardando o par de seres.
Os outros qedoshins mantinham suas atividades, mas estavam alerta.
Ouviam-se, de quando em quando, passos que rondavam o Jardim.
Surgiu Ishtar, era findo o dyo e Deus não veio.
Ninguém veio.
E como os olhos da noite, Lúcifer e seus qedoshins tinham seus olhos bem abertos e brilhantes.
O par de seres dormia, eles ficaram de vigília. Não era possível descansar.
Mais uma noite...
Ansiavam pela alvorada.
E a aurora surgiu, só.
Eles aguardavam e o tempo parecia estirar-se.
Acompanhavam o menor som que deles se aproximava, tensos, mas eram apenas os outros qedoshins caminhando longe, recolhendo folhas, varrendo as alamedas, podando os arbustos... zumbidos das abelhas...
A cada estalido, um sobressalto!
Deus estava demorando.
Lúcifer decidiu que seria melhor se recolherem para mais próximo das árvores de Deus. Talvez Ele até tivesse vindo e O perderam por não estarem próximos à Árvore da Vida.
Deus visitava as árvores todos os dyos...
Já terminava a manhã quando tiveram o primeiro contato com Deus que, na realidade, enviou Saphar, um conselheiro!
Lúcifer reconheceu suas cores, turmalina e branco, de longe, mas quando dele se aproximou, incomodou-o perceber que em sua face tinham surgido manchas de um róseo siena. Isso era sinal de tensão.
Saphar expôs a situação e aguardou, eram apenas ouvidos destinados a ouvir a versão de Lúcifer e seus qedoshins.
Eles agora eram chamados de qedoshins de Lúcifer.

É difícil nomear o que eles sentiam.
Um conflito que nada mais era que uma discussão em que foram feitas ofensas pessoais, tinha tomado a dimensão assustadora de um possível complô de um grupo de qedoshins, liderado por Lúcifer, com intenção de usurpar o poder de Deus.
E eles já tinham começado, igualando-se a Ele, mas através de experiências medonhas e profanas dentro das dependências do Jardim.
Era o que se ouvia do outro lado dos espinhos da cerca, do outro lado do labirinto.

Deus não viria, nem ao menos para visitar suas árvores tão queridas!
Isso inquietou mais Lúcifer, a percepção da gravidade.
Acuado, sentiu-se tentado a levar os ditos seus qedoshins com Sua dita criação para a avenida e revelar toda a situação, de fato. Mas não se sabe se foi pelo costume ou pela lealdade que ele silenciou.
Ele resolveu que responderia somente para Deus.
Saphar, agora só ouvidos, não retrucou e retirou-se do Jardim, levando a resposta do Kami.

Era meio-dyo e a passagem do Jardim tinha tanto movimento quanto o ancoradouro do mercado.
Os aions davam voltas absurdas para passarem pela avenida, em frente à passagem do Jardim.
Visitavam outros, cujas casas ficavam voltadas para a avenida, de onde poderiam observar o Jardim, enquanto apreciavam um coffea de hospitalidade.
Outros mais curiosos derrubavam coisas para saírem em seu encalço pelo calçamento de andesitos e, furtivamente, espicharem os olhos pela passagem do Jardim, ou espiarem por possíveis frestas da coroa de espinhos de que haviam se cercado Lúcifer e seus rebeldes.
E, apesar do movimento que corria ao redor do Jardim, lá dentro chegava certo silêncio... fosse por temor ao poderoso Kami, pela expectativa da vinda de Deus ou porque aguardavam para poderem contar que viram um aion voar!... também poderiam?
E alguns poucos ouviram as risadas tenras e deliciosas que vinham lá de dentro.
E todos procuravam não pisar na mancha do rastro de barro nos andesitos da avenida.
O que não significou que não tenha sido minuciosamente examinada de perto por quase todos eles, fazendo com que muitos dialogassem e conferenciassem intimamente com outros que não eram seus conhecidos.

Os outros qedoshins percebiam essa movimentação com apreensão e, apesar dos temores, tentavam ainda manter sua rotina.
Lúcifer e seus qedoshins não tinham como.
Todos os seus esforços eram voltados para resguardar aqueles dois seres e tentar decifrá-los, prepará-los e, dessa forma, concluir a transcrição.
E, nessa tentativa, eles entendiam as frustrações do Kami.
Aqueles seres tinham algo de errado e nunca nenhuma criatura tinha demorado tanto!
Eram mentes trabalhando juntas por mais de um dyo e o que conseguiram? Pouco, muito pouco, quase nada.

No fim do meio-dyo, Saphar retornou com a resposta. Entregue nas mãos do Kami.
Lúcifer leu-a, pediu ao conselheiro que esperasse um pouco e levou-a para os seus, que aguardavam afastados.
Depois, em silêncio, ele e mais alguns acompanharam Saphar até a torre de Birs Nimrud, até o trono de Deus.
Enquanto caminhavam pela avenida deserta, o grupo de qedoshins sentia que olhos os acompanhavam.
As pisadas nos andesitos ecoavam e as ondas de som traziam farpas que lhes fincavam as nucas.
Parecia que o Cant de Ceu era vazio.
Eles caminhavam sós.
Defronte às portas fechadas do primeiro pavimento de Birs Nimrud, a torre de Deus, nenhum deles ousou erguer a cabeça, fitavam seus pés descalços sobre o preto, verde e vinho das margas, exceto Lúcifer...
Ele levou seus olhos até o último pavimento, janela por janela, pedra por pedra.
O que ele procurava?
Muito tempo depois diriam que Lúcifer ergueu sua cabeça com arrogância para mostrar a Deus que se considerava um igual e, mais tempo depois, diriam que um deus parecia buscar Deus e outros ainda, jurariam que Lúcifer, em submissão à vontade de Deus, fiel como sempre, dava seu último olhar sobre a torre, perscrutando pedra por pedra, vão por vão, antevendo seu destino... um último olhar, sua despedida... uma lembrança... e saudade.
Saphar abriu as portas ferrosas, o metal rangeu carregando seu peso.
O salão vermelho estava vazio.
E logo suas pedras absorveram as ondas do eco de seus passos. Saphar conduziu-os à escadaria.
Eles ascenderam pavimento por pavimento, até a frente da porta de prata... estava semiaberta.
Após um instante de hesitação, Lúcifer voltou-se para o conselheiro a seu lado, mas ele não estava mais lá. Esse assunto era só deles.
Lúcifer empurrou vagarosamente a porta e foi cegado pela luz do reflexo prateado.
Ele foi o primeiro a adentrar o recinto, caminhou, sem ver, em passos firmes, guiando-se pelo hábito.
Os outros qedoshins seguiram-no, cabisbaixos.
Aos poucos as formas voltavam aos seus olhos e lá estavam eles... cercados pelo violeta... diante do trono de Deus, um trono colossal, digno de majestade, como que retirado das lendas de Magadha... sólido, frio, bruto como foi seu monarca quinane!
Deus estava sentado no trono, trajava apenas um manto púrpura, sem luvas, sem máscara, descalço.
Lúcifer não conseguia avaliar seu humor, sua face estava nebulosa, isso não era bom.
Isso todos sabiam.
Os qedoshins estacaram o passo, voltaram um para trás e Lúcifer subiu sozinho os degraus de turmalina do trono.
Ficou diante de Deus, face a face, e aguardou.
O calor vindo Dele sufocava.
"Lúcifer, disseram-Me que você mantém uma criatura no Jardim que é criação sua! Os rumores são de que você usou da Minha confiança, tramando usurpar o Meu poder criador para si!" – pausa. – "Viram um ser débil e sem esplendor em seus braços" – pausa. – "Viram-no de asas abertas!" – pausa. – "Vimo-no voar!..." – e a voz de Deus era profunda.
Lúcifer indignou-se com as acusações, mas como uma criança, protestou – "Tâta, o que dizem não é verdade!" – e seu rosto contorcia-se de nervosismo. – "A criatura que viram... é a mesma que me foi entregue a tempos atrás... por Tâta!" – e ele tinha lágrimas represadas nos olhos. – "Tentava prepará-la, como fiz com todas as outras que me foram confiadas!" – pausa. – "Eu... foi um incidente. Estava cansado e..." – sentia-se consumido pelos olhos dardejantes de Deus, sugando sua energia, perscrutando sua mente. Lúcifer sabia que tinha que ser forte e não desviar seus olhos daquela força. – "... nunca cogitei usurpar Seu poder de criação. Nunca..." – sabia que não podia mentir. – "Nunca desafiei Suas leis deliberadamente e, se o fiz, foi por prezar Seu bem mais do que a mim mesmo! Se o fiz, foi tentando seguir Sua vontade de manter a criatura e, mais ainda, de mantê-la longe dos olhares dos outros aions" – pausa. – "O que faço até mesmo neste instante, pois Tâta bem sabe que não estamos todos os qedoshins envolvidos aqui, em Sua presença..."
Os olhos de Deus escureceram num abismo sem fim, impenetrável.
"Então o ser débil e sem esplendor de que falam é o mesmo que lhe confiei em segredo? O mesmo par que você deveria manter em segredo?"
"Sim..." – e Lúcifer hesitou, não sabia mais como podia chamá-Lo.
"Por que Me desobedeceu e os expôs fora do Jardim? Um ser débil como chamam! Queria Me ridicularizar?!"
Lúcifer sentia vertigens. Estava prestes a perder os sentidos.
"Eu não sei explicar como aconteceu. Estava cansado... muito cansado. Deixei-os brincando a meu lado e, quando me dei conta, um deles havia sumido" – buscava em sua mente uma possível lembrança paralela que pudesse explicar como o pequeno havia sumido. – "Ele foi sozinho."
"Sozinho? Um ser débil e, segundo você, despreparado, atravessou sozinho o Jardim, a passagem do labirinto de espinhos e pôs-se a desfilar em plena avenida, sob toda a luz do Sol Azul?!"
Lúcifer não sabia mais o que responder, nem ele mesmo sabia exatamente como o pequeno conseguiu fazer aquilo e o peso do descontentamento de Deus estava demais para seus ombros.
Respondeu com silêncio.
Deus afundava Seus olhos nos qedoshins e não encontrava respostas.
Ficou mais irritado.
"Por que o cobriu de barro?" – pausa. – "Sua pele, porventura, desagrada-os?!"
Lúcifer, infelizmente, deu um suspiro alto.
"Tâta, não o fiz! Eles fazem isso sempre que veem uma poça."
Deus estava, agora, irado.
Seus olhos relampejavam em minúsculas tempestades.
"Para seres tão despreparados como você diz e, vejo, os seus afirmarem, eles parecem bastante ativos!" – mas Deus ainda era Deus. – "Por que não estariam prontos para ir?" – e Sua voz abafou, como prenúncio de trovões.
Lúcifer estava extenuado, soou esvaindo-se.
"É difícil explicar, mas eles têm algo errado."
O ribombar dos trovões no âmago de Deus chegavam, mas Deus ainda era Deus.
"Eles se alimentam?" – pausa. – "Porque, se estão excretando na avenida, devem ter ingerido algo que, de alguma forma, está saindo."
Lúcifer tentou explicar.
"Sim, eles se alimentam. E isso é um dos problemas... seu apetite... eles comem..."
A face de Deus movia em tempestades.
"Lúcifer, você está Me parecendo muito confuso. Eles estão ou não estão prontos?!" – o saguão reverberou. – "Responda-Me, Kami!"
"Não!" – e o Kami cerrou os olhos para esconder sua tristeza.
O saguão silenciou.
O violeta absorveu as ondas.
Os qedoshins respiravam forte.
Seria calmaria? Ou era a quietude que precede a borrasca?!
Deus observou-os e voltando-se novamente para Lúcifer.
"Nenhuma criatura demorou tanto assim. Tem certeza de que está fazendo o certo, Kami?"
Lúcifer não gostava quando Deus o chamava assim, sabia que era ironia e, com uma ponta de indignação, a cor voltou a seu rosto.
"Tenho" – pausa. – "Todos sabemos disso" – ele não se referia apenas aos seus qedoshins, o que Deus compreendeu perfeitamente. – "Há algo de errado!" – e era isso.
Deus ouviu e retrucou.
"O que está errado?" – com voz gutural.
Era a vez de Lúcifer se impacientar. Não era culpa dele, o que Deus queria? Por que insistia? Por que não aceitava a verdade? E o que era aquilo? Não se tratava de um incidente com o Zrî e seus kshatryas? Foi Ele quem fez as criaturas, por que perguntava a ele?
E ele só sabia dizer as coisas pelo jeito mais fácil, pela verdade.
"A consciência deles não parece certa" – e foi seco.
Deus cintilou de leve um esgar de sorriso.
"Kami, todas as criaturas evoluem."
Lúcifer viu o brilho e sabia que não era bom.
Tinha que se acalmar, mas, uma vez que a verdade fora dita, não podia recuar.
"Sim, entendo, Tât... mas Kyrie, esses são imperfeitos..." – não era a palavra que ele queria que saísse, muito menos soando esganiçada.
E veio a borrasca!
A torre tremeu, raios chicotearam dentro do saguão, cortes no ar ribombaram ao longe.
Quem foi alcançado pela ira estremeceu e correu!
Deus ergueu-Se do trono e expandiu como se fosse engolir o qedoshin.
"Está dizendo que Minha criação é imperfeita?!"
Lúcifer ajoelhou-se.
"Lamento, Kyrie. Estou apenas dizendo a verdade" – tinha uma certa lembrança de que Deus, assim, não era bom.
O bafo de Deus flamejava.
"Basta, qedoshin! Você, Kami, irá banhá-los, transcrevê-los e deixar que sigam seu destino!"
O rosto de Lúcifer estremeceu, seus olhos tinham medo. "Tâta, por favor, eles não estão prontos! Venha ao Jardim e veja."
Um dos qedoshins resolveu ajudar seu Kami, endossando-o.
"É verdade! Eles não estão prontos" – ele entendia a tênue cadeia que afligia Lúcifer e, seria? Teria alguém que explicá-la a Deus? – "Deixá-los ir pode arriscar não apenas o seu destino, mas o de todos que compartilharem seu tempo e espaço" – e ele não foi arrogante.
Lúcifer podia ver o cintilar na escuridão, nem sempre ajudar é bom.
"Tâta, eu Lhe imploro..." – agarrou barra do manto de Deus. – "... confie em mim mais uma vez! Não saber o que fazer e..." – assim que proferiu, ele mesmo ficou confuso... a quem ele se referia?
Deus olhava-o do alto, vibrando.
"Você diz... que Eu não sei?!" – e nova tempestade esvaiu de Deus. – "O que vocês sabem de Minhas criações para acreditarem poder interferir dessa forma?! Dizer a Mim... Deus... que criei algo imperfeito?!" – Deus ocupava quase todo o saguão agora. – "Aqui..." – e tirou do manto uma folha de papiro rabiscada e assinada. Deus enrolou-a brutalmente, após tê-la praticamente esfregado no rosto de Lúcifer – "... essas são Minhas ordens e vocês, qedoshins, irão cumpri-Las!" – e, tendo dito isso, lançou-o sobre Lúcifer.
O rolo de papiro bateu em seu rosto e caiu, rolando pelo piso.

Foi apenas o que o Zrî viu quando adentrou o saguão violeta com seus kshatryas, acudindo ao sinal de Deus.
Aquele era um dos poucos sinais que permitiam, até mesmo os kshatryas, afinal qualquer aion, de adentrar os recintos de Deus sem aguardar por Sua licença. Era um sinal de perigo, de que Deus estava sendo ameaçado.
E, infelizmente, foi apenas a última sentença e o último ato que o Zrî ouviu e viu.

Indignado, o Zrî investiu contra o Kami. "Monstro, além de gerar monstros tem a ousadia de enfrentar Deus?!"
Lúcifer virou assustado.
Os qedoshins correram a cercar seu Kami, protegendo-o da multidão que invadia o saguão.
E Lúcifer retrucou, com segurança.
"Zrî, afaste-se, esse assunto não é de sua competência" – estava irritado, nem mesmo os aions da Guarda de Deus intervieram. Quem eram eles para fazê-lo?
O Zrî entendeu muito bem.
"De minha competência? Cumprir ordens é de minha competência! E aqui..." – pegou o papiro enrolado no piso prateado, olhou de esguelha para Deus que, sabia, estava observando e estufou o peito para mostrar por que ele era o Zrî – "... está a ordem que deve ser cumprida!"
Lúcifer não podia se defender sem desobedecer às ordens de Deus.
"Kyrie..." – e ele encontrou apenas um Deus reticente.
O Zrî ardia por protegê-Lo e mostrar seu valor.
"Petulante! Ainda discute as ordens de Deus!" – esbravejou balançando o papiro enrolado, enquanto a multidão empurrava seus kshatryas para poder enxergar melhor.
Então, Deus sentou no trono.
"Basta!"
O burburinho dos aions se apinhando e acotovelando silenciou.
"Kami, você irá cumprir o que determinei. Retire-se!"
Se Deus não queria discutir antes, imaginem se o faria diante de uma plateia.
"Zrî, você irá escoltá-los e garantir que nenhum qedoshin saia do Jardim até que Minha ordem seja cumprida" – assim, reconhecia a presteza do Zrî e era o bastante, não tinha que dar maiores explicações.

Lúcifer e seus qedoshins, como passaram a ser chamados, foram jogados pela entrada do Jardim pelo Zrî e seus kshatryas.
O Zrî olhou a passagem e como não encontrou lugar para pregar a ordem de Deus, pegou uma lança e fincou-a no chão, trespassou o papiro no cabo e deixou a ordem lá, pendurada, voltada para o Jardim.
Depois chamou um de seus generais, Zastra, e ordenou que montasse guarda, mantendo seus kshatryas de sentinela com suas achas à mão e cuidando para que nenhum qedoshin saísse até que a ordem fosse cumprida.

Os qedoshins e Lúcifer retornaram para o interior do Jardim, onde haviam deixado os outros cuidando dos pequenos.
E lá, discutiram sua situação.
Era difícil assimilar o que estava acontecendo.
Como um engano tão terrível podia ser cometido por Deus, se é que era um engano. Como uma simples maledicência tinha tomado tamanha proporção dentro da cidade, levando até mesmo Deus, se é que Ele estava sendo levado...
Uma confusão que levou Lúcifer a brigar com Deus!
Fez Deus duvidar do Kami! Mas como podia duvidar daquilo que Ele mesmo sabia?!
Lúcifer estava atordoado, o cansaço acumulado dos cuidados constantes despendidos naqueles pequenos mais a tensão não permitiam que ele atinasse, até ele estava em dúvida se o que ocorreu foi uma discussão com Deus ou o quê.
E como Deus ofendeu-Se tão rápido! E por quê?
Tudo causado por aqueles monstrinhos, aparentemente tão débeis e inofensivos...
"Tudo isso é culpa dessas criaturas!"
"E Deus ordena que os deixemos seguir seu destino... encaminhá-los."
"Isso está fora de controle, não faz o menor sentido! Mesmo que estejamos fora do tempo que se leva para a transcrição, não se justifica mandá-los como estão."
"É, não funciona assim!"
"Deus ofendeu-Se quando Kami disse que eles são imperfeitos" – sussurrou um dos qedoshins.
E Lúcifer respondeu calmo.
"Qualquer um teria se ofendido..." – e pensando – "... mas Deus não podia ser levado por Seus sentimentos e dar essa ordem. Ele mais do que qualquer um sabe que aquele mundo é mais do que apenas pó."
"Além do mais, é a verdade! Eles têm algo de errado. Têm um quê de monstruosidade" – endossou um qedoshin.
"Se é apenas uma questão de deixá-los evoluir... podemos fazer isso aqui mesmo, como estamos fazendo, até que tenham condições de seguir seu rumo" – ponderou outro.
"Eles não vão conseguir essa evolução. Há algum desequilíbrio neles" – refletiu outro mais.
"Algum? Escolha: sua alimentação, seu corpo, sua postura, sua consciência... se é que têm! Afinal, o que são eles?"
"O que vamos fazer?"
"Deus ordenou que os enviássemos, mas não deu um prazo. E se esperássemos?" – sugeriu o mais ponderado.
Lúcifer parecia absorto, mas estava ouvindo atentamente e pensando mais ainda.
"Não. Deus não deu um prazo, mas designou o Zrî e seus kshatryas... eles não vão esperar, eles, sim, vão determiná-lo... à maneira deles!" – e voltando-se para os qedoshins: – "É o efeito de manter por tanto tempo um exército ocioso."
Os qedoshins horrorizaram-se.
"Eles poderiam?!"
Lúcifer deu de ombros.
"Depois do que eu vi e pelo que estou entendendo... qualquer coisa é possível. Se nós podemos criar monstros dentro do Jardim... Se eu posso roubar a criação de Deus..." – e suspirou cansado.
"Podemos nos recusar!"
"Ou lavar-lhes as mãos e mandá-los assim mesmo... e seja o que Deus quiser!"
Lúcifer ficou bravo.
"Não seria certo com todos os outros que já enviamos! Estaria errado conosco mesmos, depois de todo o trabalho que tivemos com todas essas... além dos próximos que, com certeza, virão."
Fez-se silêncio.
Os qedoshins meditavam, taciturnos.
"Somos apenas uma parte dos qedoshins... e se Deus mandar outro qedoshin enviá-los?" – conjeturou um.
Lúcifer fez um beiço que logo caiu.
"Nada O impediria."
"Não seria melhor reunirmos todos os qedoshins para decidirmos isso?" – continuava ponderadamente um.
"Devíamos matá-los!"
Os qedoshins deram um sobressalto, cercando os pequenos ao ouvirem a sugestão do vulto apoiado no tronco de uma árvore próxima, arrepiados com o rancor que carregava as palavras daquele desconhecido que surgia sob os últimos raios azuis de sol.
Terminava a tarde, Ishtar piscava.
O Kami, sendo o Kami, assumiu a frente.
"Quem é você?"
O vulto estava coberto. O turbante que devia lhe cobrir apenas a cabeça caía como um véu sobre sua face e sobre si, ocultando-o. Ele caminhou tropegamente até o Kami e segurou em seu ombro.
"Devia lembrar-se de mim, qedoshin" – e, afastando o pano do rosto, procurou os olhos de Lúcifer.
Lúcifer observou aqueles olhos que não lhe pareceram desconhecidos.
"Matar-nos! Como se isso fosse fácil" – falou um qedoshin, notando que aquele vulto moribundo se tratava de um kshatrya.
O kshatrya voltou-se para o qedoshin.
"Não vocês" – procurava com olhos febris por entre as pernas dos qedoshins. – "Vejam o que aquela aberração fez comigo!" – e, afastando o manto, expôs sua perna ferida, parecia desfolhar...
Lúcifer percebeu que aquele era o kshatrya que havia cutucado o pequeno, fazendo-o expelir o líquido amarelo fumegante.
O kshatrya apontou para um dos seres.
"Isso não é bom. Devemos matá-los!" – ele parecia delirar, talvez tomado por rancor mais do que por febre. Sua imagem dizia tudo, um kshatrya aleijado por um esguicho da pequena criatura.
Os qedoshins entreolhavam-se, estacados.
"Parece que os kshatryas na passagem servem apenas para impedir nossa saída, mas a entrada tornou-se livre" – comentou irônico um qedoshin.
"Não devem deixar nenhum qedoshin sair... ordens de Deus" – explicou o kshatrya, enquanto tentava aproximar-se mais do cerco dos qedoshins.
Mas eles juntaram-se mais, tensos.
O kshatrya desviou os olhos de suas pernas.
"Eu estou do lado de vocês. Como prova..." – hesitou, temeroso – "... meu nome..." – silêncio – "Dou-lhes meu nome!..." – e buscou confiança nos semblantes dos qedoshins que hesitavam. – "Sei qual foi a ordem de Deus... sei ler" – e sorriu orgulhoso. – "Incrível, não? Um kshatrya qualquer que sabe ler! Eu li... Entrei e li. Sei a quem isso pertence... Sei do que será capaz... isso não pode viver!"
Lúcifer temia o brilho hostil dos olhos do kshatrya.
"Nenhum de nós falou em matar!" – pausa. – "Deveria procurar seu comandante e mostrar-lhe suas condições e, talvez..." – calou-se antes que dissesse para que ele pusesse o Zrî a par do que estava escrito, lesse para ele. Lúcifer conhecia I... o Zrî, sabia que ele tinha uma preguiça em ler, mas não achou certo contar – "... seria o mais adequado."
O kshatrya entendeu o que o Kami não falou e respondeu:
"Meu comandante não quis me ouvir. Ele está surdo! Ofendi-o! Está esperando para trucidá-los... mostrar serviço a Deus" – o brilho dos olhos do kshatrya tremulava, ele oscilava. – "E eu não sou o único. Outros aions... do outro lado, pisaram ou mexeram nas marcas daquele líquido..." – sorriu macabro. – "Ninguém imaginou que pudesse fazer algo realmente... mau. Aquilo era tão pequeno... como poderia atingi-los? Como pôde atingir-nos? Somos aions!" – e fechou os olhos por uns instantes, recobrando o fôlego e continuou: – "Existe algo de mau aí... e esse mal atingiu-nos, a todos, a vocês!" – sua voz esvaía, balouçava como se estivesse prestes a sucumbir. "Por que Deus fez isso?"
Os qedoshins estavam assustados. Aquele à sua frente não era mais um aion, um kshatrya. Parecia uma sombra, apenas sua sombra.
"Se o que você está dizendo é verdade, onde estão esses outros? Por que todos vocês não foram até Deus?" – perguntou um qedoshin desconfiado.
"Porque ninguém quer nos ver!"
Foi quando viram que estavam rodeados por sombras, moribundos que se ajuntavam ao seu redor.
"Isso não é possível! Se eles foram atingidos, e nós?" – sussurrou um qedoshin.
"Nós os tocamos mais do que os outros. Deveríamos estar pior ou nem estar mais aqui! Estaríamos exauridos" – concordou outro.
Lúcifer assentiu com a cabeça.
"Talvez... Talvez seja algo do Jardim..."
O kshatrya ouviu-os.
"Vocês podem nos curar?" – exclamou num lampejo de esperança.
E os qedoshins foram cercados pelos aions em sombra, ávidos por cura, por uma salvação.
Lúcifer percebeu o perigo da situação, precisava retomar o controle.
"Eu não sei! Temos que pensar" – exclamou, afastando as sombras dos seus. – "Vamos descobrir o que temos ou tivemos de diferente de vocês" – e conseguiu.
Os aions se impacientavam e junto da espera crescia a raiva.
"Devíamos matá-los! Exterminar esse mal antes que possa crescer!"
"Talvez eles tenham razão" – sussurrou um qedoshin ao ouvido de Lúcifer.
Lúcifer conteve o fôlego por um momento.
"Não! Eles são criação de Deus, nossa tarefa não é matá-los, nunca foi, mas sim prepará-los, transcrevê-los!"
"Deus não quer que eles sejam preparados ou transcritos. Você sabe disso. Deus não os quer aqui!"
Ao ouvir isso, Lúcifer foi solapado com o golpe duro da verdade e refugiou-se dentro de si.

Talvez Deus não estivesse ofendido, mas fazendo parecer? Por quê? Para que aquelas criaturas que Ele gerou saíssem do seu Cant de Ceu e, dessa forma, não pudessem mais ferir nenhum aion? Ou Ele?... Assim eles seriam poupados dessa praga, mas o Planeta Azul não.
Ou... Deus sabia ou sempre soube que eles eram imperfeitos? Talvez não soubesse, mas agora tinha certeza e... tinha vergonha de admitir que não soube fazer uma criação perfeita? Podia ter-Se deixado levar pelos sentimentos e, ofendido, num acesso de raiva, ordenou levianamente que os despachassem?! Isso já ocorreu antes com outros governantes.
Qual seria a resposta?
Antes, qual seria a pergunta?...
Lúcifer não sabia.
E se Deus só estivesse tentando ganhar tempo? Mas tempo para quê? Ele era Deus, por que o Senhor precisaria de tempo? Aqueles seres não poderiam ter conquistado a afeição de Deus, se assim fosse, não os condenaria ao fim certo. A menos que, não fosse o fim!
O que acontecia para que Deus não declarasse serem eles Sua criação? Não lembrava,... mas é claro que eram Sua criação. Ele trouxe-os, entregou-os a ele...
E, por que eles, qedoshins, não foram atingidos como os outros aions? O que eles tinham de diferente? Eram todos aions... Tinha de ser algo do Jardim...
Mas Deus não admitiu tê-los criado... Deixou parecer que foram eles, ou melhor, ele, Lúcifer. E lembrando do começo... Deus escondeu a existência dessas criaturas... sempre.
Eram eles o problema? Ou seria... Ele? Ou ele?

Os qedoshins discutiam e comparavam-se com os outros aions, buscando suas diferenças para descobrirem o que poderia tê-los tornado imunes a esse aparente mal que a criatura transmitia. Em meio a isso, alguns ainda insistiam para que o par de seres fosse eliminado. Acabar com a fonte do mal, diziam.
O grupo aumentava, surgiam mais aions no Jardim, aions que conheciam e acreditavam nos atingidos, aions que testemunharam o aparecimento das feridas e outros que diziam que os andesitos manchados estavam a se desfazer, fazendo-os temer que surgisse um buraco na avenida, podendo fazer o Cant de Ceu desabar.
Lúcifer via que essa multidão não estava desapercebida pelos kshatryas de Zastra e os ânimos estavam tornando o local perigoso para os pequenos também. Quanto tempo para o grupo decidir pôr um fim naqueles miúdos seres? Apreensivo, tinha que pensar e tomar a decisão correta, mas sem tempo, pressionado, ele mesmo sem opção para si e para os seus.
Ninguém ouvia mais ninguém. Era o caos!
Agachou-se e engatinhou entre as pernas dos qedoshins até os pequenos. Olhou profundamente em seus olhos e, apesar de o seu comportamento não ser correto, não conseguiu ver mal neles. Deus não lhe revelava seus planos inteiramente... Por que tinha que ser assim, sempre assim?! Ele se acostumou a obedecer e esperar que o tempo lhe mostrasse. E seria isso novamente? Não sentia assim. Mas quem era ele? O Kami... Decidiu. Não pelos aions, não por seus qedoshins, nem pelos olhos das pequenas criaturas, nem por ele mesmo. Decidiu por Deus.
Puxou os pequenos para junto de si e embrulhou-os no seu manto. Rastejou para fora do aglomerado, levando-os, escondido.
Ele não conseguiria passar dos limites do Jardim, sabia.

Acocorou-se por entre os arbustos de flores douradas do canteiro dos qedoshins e aguardou, espiando, de quando em quando, as cabanas do Jardim.
Não esperou muito, logo viu o qedoshin que esperava. Como sempre, atrasado, ele ainda arrastava sua trouxa de folhas secas recolhidas da limpeza dos canteiros.
Fez barulho para chamar sua atenção.
O qedoshin deu um pulo para trás, assustado, sem emitir som e estacou, tentando identificar o vulto por entre as flores, mal iluminado pela luz vinda das lanternas dentro das cabanas.
Então Lúcifer iluminou seus olhos para que ele o reconhecesse e chamou-o com um gesto.
Ele entendeu. Olhou ao redor, procurando outros.
Estavam sós.
Caminhou para dentro do canteiro, arrastando sua trouxa como se ainda recolhesse folhas e agachou-se.
"O que está acontecendo, Kami?" – perguntou o jovem qedoshin.
"Você confia em mim?" – indagou Lúcifer tristemente.
Os olhos do qedoshin inclinaram, um pouco magoados.
"Sempre, por toda a lembrança da minha vida..." – pausa. – "O que está acontecendo? Temos kshatryas assustadores na passagem do Jardim... uma ordem fincada... numa lança cravada! Ouvimos burburinhos vindos do outro lado do labirinto” – pausa. – "Vi sombras passando... Estão dizendo que o Kami... deixou Deus bravo" – respirou fundo. – "Mandou que fizéssemos o que sempre fizemos, sem questionar. Estou fazendo!" – e sorriu. – "Ainda é meu Kami, não é mesmo? Não vai me deixar!"
Lúcifer desviou os olhos para que ele não visse ainda a verdade.
"Eu entendo. Você leu a ordem na lança?"
"Muito rápido... muito pouco. Fiquei com medo dos kshatryas" – respondeu envergonhado o jovem qedoshin por suas limitações e lentidão.
"É uma ordem de Deus. Está ouvindo o tumulto?" – e Lúcifer voltou seu rosto em direção ao grupo de aions feridos e dos seus.
"Sim" – o qedoshin olhou para as copas das árvores de Deus e, virando, apontou para a passagem do Jardim. – "E lá... Está crescendo. Vão invadir o Jardim? Destruí-lo?" – e sua voz soava como a de uma criança junto de seu guardião.
"Não. Não vou permitir isso!" – ele era o Kami, mas Lúcifer não podia mentir. – "Espero que não" – suspirou baixo. – "Eu não sei" – e encarando os olhos do jovem qedoshin: – "Você lembra de como sair do Jardim... pelo labirinto?" – piscou um sinal.
O jovem olhou-o espantado e suspendeu a respiração por alguns momentos e, em seguida.
"Sei... sei sair!" – apontou os olhos para oeste.
"Sabe, de lá, chegar até Deus?" – e Lúcifer agora falava seco e rápido, não para impor ou impressionar, mas porque sentia bolus em sua garganta, engasgando pelo que pediria ao jovem.
"Sair e chegar até Deus?!" – apesar de confiar mesmo sem compreender, o jovem qedoshin sentia um fiapo de angústia roçar-lhe o peito, enquanto tentava perscrutar a tristeza profunda dos olhos do Kami.
"Sabe encontrá-Lo?" – e o Kami estava mais ríspido. – "Só me responda isso!"

O que ele estava fazendo? Se pudesse, abraçá-lo-ia e não o soltaria mais. Queria chorar... mas o que mais faria... o que mais poderia? Seu... Thmé.

O qedoshin abaixou a cabeça e encolheu-se, sentindo-se empurrado ao abandono.
"Acho que sim, mas com tantos kshatryas, como..."
Lúcifer segurou forte seu ombro, trazendo-o mais próximo.
"Ouça, Thmé! Eu sei que você está com medo! Eu... lamento" – e esperou o jovem erguer os olhos novamente. – "Este embrulho..." – e mostrou a trouxa de seu manto, fechada. – "... isso é de Deus! Isso tem de ser entregue nas mãos de Deus e de ninguém mais! Sei que estamos sendo vigiados, mas acredito que você consiga passar e levá-lo até Deus. Eu... não posso" – e engoliu outro bolus frio e amargo.
Os olhos de Thmé lampejaram uma breve felicidade.
"E se entregássemos aos kshatryas? É de Deus, eles levariam e iriam embora, resolveria..." – ele pressentia uma perda iminente.
E Lúcifer interrompeu-o.
"Não! Você é surdo? Tem de ser entregue nas mãos de Deus! Ninguém pode tocar o que tem aqui além de Deus! Nem você deve abri-lo ou espiá-lo ou qualquer coisa! Aconteça o que acontecer."
"Eu não entendo!" – o jovem qedoshin soava como lamento.
"A única coisa que você tem de entender é que Deus quer..." – Lúcifer engoliu a palavra – "... quer o que está dentro desse embrulho. Ninguém deve tocá-lo ou vê-lo! Não sei quantos podem querer o que está aqui dentro."
O rosto de Thmé ficou grave. Ele era jovem, mas o Kami falava com ele não mais como a uma criança e o que lhe pedia era algo sério. – "Posso passar os limites do Jardim, mas como vou alcançar Deus?" – e encolheu os ombros como uma criança.
Isso Lúcifer não podia responder, não via outra solução.
"Apenas faça!" – e empurrou o embrulho contra o peito de Thmé e soltou-o. – "E, por favor, leve esta mensagem" – furou o dedo num espinho das flores e arranhou algo numa das folhas secas que pegou da trouxa do qedoshin, colocando-a cuidadosamente dentro do embrulho, – "Agora, espere um pouco até que eu me afaste e, então, vá! E cuidado, muito cuidado com..." – parou antes que dissesse o que não devia para o jovem qedoshin. – "Vá para Deus."
Lúcifer rastejou pelo meio das flores do canteiro e desapareceu como uma sombra em direção ao centro do Jardim.
Não havia mais luz, apenas escuridão.
Thmé contemplou a imensidão da noite... e num profundo suspiro, abraçou-se, afrouxando seus braços em seguida, tinha esquecido do embrulho e seu conteúdo era macio, mole. Entendeu a recomendação de cuidado que Lúcifer tinha lhe dado. Não podia segurá-lo forte, mas firme, apenas firme... como fazia com os ovos. Agora, além do medo de estar sozinho em meio a algo que desconhecia, também estava com medo de estragar o que o embrulho continha. Ficou tentado a espiar o que carregava, mas tinha que se concentrar apenas em seguir as ordens do Kami.
E o que estavam dizendo... seria o Kami confiável?
Afastou esse pensamento de sua mente. Afinal, era Lúcifer... Decidiu que era melhor não pensar e usar sua energia apenas para realizar a missão.
E como faria isso?
Viu luz surgindo ao longo do labirinto de espinhos.
Não era luz de lanternas, eram tochas!
Quem as acendeu? O que era isso?
Afastou-se para uma parte mais escura e ergueu-se com cuidado.
Pôde ver que uma parte do labirinto mantinha-se na escuridão. Era a face oeste, onde além do labirinto de espinhos havia um campo, Varsha, o caminho que tinha entendido do Kami... e entre ele e Deus, um pântano apenas.
Esgueirou-se para aquele lado.

A luz das tochas demarcava em preto a silhueta do alto da coroa de espinhos do Jardim.
Lúcifer via seus qedoshins e os aions através dos parcos reflexos acobreados que chegavam das labaredas do outro lado.
Estavam cercados.
Seu primeiro pensamento foi para seu jovem qedoshin.
"Thmé, vá para seu Tâta! ... Aceite-o... Proteja-o..." – foi sua prece, quando estalos de ferro sendo martelado o despertaram, vindos por todos os lados.
Um qedoshin corria a esmo pelo Jardim. Pegaram-no.
"Você estava por lá? O que é isso?"
"O que está acontecendo?"
O qedoshin fitava-os, abobalhado.
Tiveram que sacudi-lo para que voltasse a si.
"Grades... estão fincando grades ao redor do labirinto, vão trancar a passagem do Jardim" – pausa. – "Estão colocando portões em Cant de Ceu!"
Os aions emudeceram e soltaram-no.
Seriam prisioneiros? Por que estavam sendo cercados?
Os qedoshins estremeceram.
Até mesmo o labirinto...
Qual seria o fim?
Até que alguém lembrou.
"Onde estão aquelas malditas criaturas? Elas são as responsáveis por isso!"
"Elas têm que morrer!"
"Se os kshatryas as querem, entreguemo-las, nuas. E eles que as abracem e paguem! Não nós!"
"É justo. Se temos que sofrer por tocar esses seres, que eles paguem também!"
"Onde estão eles?!"
...

O grupo parou de esbravejar e procurou por entre os pés dos qedoshins... e esses não queriam mais resistir, mas também não viam nada.
"Eles não estão mais entre nós" – falou Lúcifer.
Os qedoshins entreolharam-se.
“Kami os enviou?"
Lúcifer não respondeu e os aions enraivecidos começaram a discutir e esbravejar, enquanto os qedoshins acotovelavam-se com o grupo para cercar seu Kami e ouvi-lo.
"Eu lamento, mas não vejo acordo para nós” – e a voz de Lúcifer era triste, ele acenou para os aions revoltados. – "Vocês têm chagas que ninguém quer ver, pelo menos ninguém que não esteja aqui, entre nós. Precisamos de toda a força que nos for possível juntar para enfrentar o que está vindo e não precisamos envolver mais ninguém, além dos que já estão envolvidos!" – após um longo suspiro. – "Só consigo pensar na água de Saras para ajudá-los. Talvez... De resto, estamos sós."
"O que fez com as criaturas?"
"Eles podiam ser nossa garantia!" – exclamou um qedoshin para surpresa de todos. – "Se Deus os quer tanto, enquanto os tivéssemos, eles seriam nosso escudo!"
Lúcifer deu de ombros.
"Eu não sei se Deus os quer tanto. O que Deus quer... De qualquer forma, era o certo. Quando esse pavio finalmente estourar, será o caos e eles provavelmente seriam esmagados no meio do alvoroço ou pior... E tenham certeza, o Zrî não leu... ainda não sabe que eles são criação de Deus e eu acho..." – hesitou antes da sentença – "... que é assim que Deus quer."
Fez sentido.
Fez-se silêncio.
"Kami..." – balbuciou um qedoshin, negando com sua cabeça.
Lúcifer iluminou seu rosto com a luz de seus olhos.
Sim, ele era o Kami e pausadamente explicou, para que não restassem mais dúvidas.
"Primeiro, Deus escondeu-os, depois fez que os esqueceu. Nega-os, o que nos colocou aqui, nessa situação. E, secretamente, ordena que os despachemos... para a morte" – vasculhou as faces dos aions procurando por dúvidas e continuou: – "Conosco ou não, eles também foram condenados. Aqui, eles morrem e seria por nosso encargo. Nem eu, nem nenhum outro deve arcar com isso. Deus criou-os e deu-lhes vida, a responsabilidade é Dele! Seres não podem ser gerados para, depois, levianamente desfazer-se deles. Não funciona assim, ninguém pode tratar assim, nem mesmo Ele. É a LEI! Eu também tenho minhas responsabilidades, os meus também. Qual é a nossa culpa? Não sei e não me importa agora. Por que vocês? Não sei. Talvez azar, com exceção deste kshatrya, ele sabe o que o trouxe para o lado de cá. Do ponto em que estamos, só nos resta decidir como queremos que aconteça. Essa decisão não é do Zrî, nem mesmo de Deus. É de cada um aqui!" – fez uma pausa para que respirassem. – "Sempre esperamos que Deus decida pelo certo e justo, está na Lei... Olhem à sua volta, Deus nos abandonou! E por quê?"
Um aion interrompeu-o:
"Talvez seja um teste! Talvez Deus esteja nos testando."
Lúcifer observou-o com um sorriso complacente e seus olhos faiscaram.
"Isso não é um teste, nem tampouco um aprisionamento. Isso é uma armadilha... de caçada! Não temos do que nos redimir! Pensem bem."
O kshatrya coxeou para perto de Lúcifer.
"Teste ou não, eu não vou viver como um aleijado e nem deixar que me peguem como um acuado!" – olhou à volta e voltando para Lúcifer. – "Kami, não o conhecia. E Deus... sempre esteve muito longe de mim. Parte de mim morreu quando meu Zrî me deu as costas. A outra parte sabe que irão me matar. Eu não me escondo da morte nem da dor. Sou um kshatrya! Eu escolho o Kami! Livre-me desse mal, Kami, dê-me com que lutar e tem meu nome para si! Eu sou Hara!"
"Eu não quero morrer assim! Eu não mereço isso. Livre-me desse mal, Kami, e aqui tem meu nome: Savitra!" – exclamou um aion.
E assim, sucessivamente, muitos nomes foram dados no interior do Jardim: Supezvara, Bahurûpa, Jayanta, Tryambaka, Ajaikapâd, Aparâjita, Ahivradhana, Virûpâkcha, Rudra...
Por fim, restavam apenas os qedoshins de Lúcifer – "Será sempre nosso Kami."
Lúcifer olhou para seu exército.
Eram sombras que refletiam o acobreado das tochas. Precisava livrá-los daquele mal... Deus não sairia dessa situação como planejou. Ele não entregaria seus pescoços docilmente para o carrasco. Teria que buscá-los à força!
O primeiro passo, ele já tinha dado, devolvendo a Deus o infeliz embrulho. Seu destino era Sua responsabilidade, não deles.
O destino deles, eles mesmos o fariam.
Lúcifer ordenou a alguns qedoshins que recolhessem todos os instrumentos do Jardim e os levassem até Saras. A outros, ordenou que enlaçassem e levassem para a beira do lago os simorghs e quimeras e, com os aions feridos, dirigiu-se para as águas do lago.
Lá chegando, teve que acalmar os muluk-taus que se alvoroçaram de seus ninhos na ilha e fez os feridos mergulharem nas águas do lago que alimentava as árvores de Deus, Sua Árvore da Vida.
Sim, eles viram, não era uma árvore como pensavam, mas eram três.
Do outro lado, o bramido do ferro fincando nas pedras, as marteladas da forja.
Lembrou-se dos outros qedoshins, aqueles que nada tinham com a desgraça. Precisava livrá-los, protegê-los de alguma forma. Algum deles tinha de sobreviver. E Thmé... conseguiria?
Lúcifer subiu no galho mais alto de Gaokerena.
Do alto, observou o movimento dos kshatryas que auxiliados por pedreiros fincavam ruidosamente grades ao redor do Jardim. Viu algo também que parecia um portão.
Olhou para baixo, os aions lavavam-se e bebiam das águas e suas chagas borbulhavam, escorrendo a sujeira. Ele não sabia se elas curariam, mas os manteria em pé o suficiente para tentarem sair de lá.
Viu que um grupo de kshatryas se perfilava do outro lado da avenida.
Chamou Hara, tinha seu nome, e fez sinal para que fosse para junto dele.

"Veja, Hara! O que é aquilo?" – apontou Lúcifer para os kshatryas perfilados.
"São arqueiros, Kami. E esses não carregam flechas comuns, são incendiárias! Não teremos muito tempo até que estejam preparados para acendê-las e fazê-las zunir pelos ares e parece que, se não sairmos, irão nos carbonizar sem nem mesmo pisarem no Jardim" – Hara sabia.
Lúcifer aquiesceu com a cabeça e Hara voltou para a água, seu pé ainda estava sujo.
Olhou para a beira de Saras e viu que seus qedoshins retornavam trazendo os instrumentos e, mais ao longe, aproximavam-se os outros com os simorghs e quimeras arrebanhados.
Avistou a luz das lanternas das cabanas dos qedoshins e desceu.

Examinou o que seus qedoshins recolheram.
Eram foices, forcados, garfos, tesouras, ganchos, estacas, machados, alfanjes... Tudo o que tinham.
Eles não tinham espadas, armaduras ou escudos. Aquilo teria de servir para enfrentarem as achas, maças, espadas, flechas... incendiárias, flechas de fogo... fogo...
Chamou Hara novamente.

"Hara, quanto tempo temos?" – Lúcifer não era um kshatrya e nem conhecia suas táticas.
"Kami, o tempo de agrupar as fileiras, resguardarem os suprimentos e atacar" – ele sabia bem, era um kshatrya.
"Do que está falando, Kami?" – indagou um dos qedoshins, assustado.
Lúcifer respirou alto, fitando os instrumentos.
"Hum... Resguardar os suprimentos não é preciso... Já têm todos assegurados na cidade, o mercado..." – e emudeceu pensativo.
"Kami, permita-me" – interveio Hara. – "Nossa única saída é a surpresa."
Uzza, o qedoshin mais próximo de Lúcifer, sentia-se perdido entre a conversa dos dois.
"Por que estão discutindo isso? Eles podem nos cercar e vigiar, mas o Zrî não pode atacar, entrar invadindo o Jardim sem autorização. Nós temos..."
Hara interrompeu-o, mas falou docilmente, como se explicasse a uma criança.
"Para o senhor do Exército a ordem já foi dada. O Zrî recebe a ordem selada e Zrechtha! De resto, é agrupar as fileiras, ordenar as armas e manter... o inimigo em local recuado, enquanto organizamos as guarnições..."
Lúcifer irrompeu. Talvez só estivesse pensando alto.
"E sem suprimentos?..."
Hara completou.
"O Exército de Deus para! Qualquer um para" – mas não se aprofundou tanto na questão, não fazia ideia do que passava na mente de Lúcifer.
"Quanto tempo até agrupar as fileiras?" – perguntou Lúcifer de um estalo.
"Bom... o Exército... todo... não está longe. Talvez a noite e... não sei... ao alvorecer" – cogitou Hara.
Os qedoshins sentiam-se atordoados em meio àquela conversa.
"E os arqueiros? Eles já estão perfilados..." – quis saber Lúcifer.
"Kami, os arqueiros sempre são os primeiros..." – e mordeu a boca embaraçado. – "É para evitar perdas desnecessárias..."
"Kami..." – balbuciou Uzza, resfolegando ruidosamente.
"Quando?" – Lúcifer ignorava seu qedoshin.
"Estando cercados, logo... provavelmente... ao despontar da aurora..." – o kshatrya estava cabisbaixo... as investidas perfeitas de seu Zrî, de que tanto já se orgulhara, esmagavam-no agora, tenebrosamente, em seu túmulo!
Lúcifer encarou Uzza com seus olhos fumegando.
"Querem queimar-nos vivos!"
Uzza estremeceu e os qedoshins e... todos os aions.
Maluh, revoltado, agarrou o kshatrya e chacoalhou-o.
"Por quê? Monstros!"
E Hara murmurou o impensável àqueles que não foram criados pelos quinanes.
"Oferenda" – e com olhos supersticiosos. – "E sempre deve consumar... até a saída da madrugada, antes dos olhos da aurora!"
Lúcifer ardeu. Seu tempo era exíguo ou em qual madrugada deveria consumar a aniquilação?... Era exíguo.
"Pakchisinha, junte os muluk-taus e enlace todos... os simorghs e as quimeras... afrouxem-lhes os nós das amarras de suas asas" – Lúcifer tremia. – "Moloch, Maluh..." – quase gaguejava. – "... e todos os outros, um instrumento para cada e, o restante, também distribuam" – e seu gesto incluía os aions que já se aproximavam, saindo das águas de Saras.
Puxou dois qedoshins para si.
"Vocês irão até nossas cabanas e... por bem ou por mal, os qedoshins devem... levem-nos às valas de Asrob, usem as redes das quimeras, eles ficarão presos, mas o amianthe das redes irá, pelo menos por um tempo, protegê-los das chamas."
"Kami, devemos amarrá-los e jogá-los em Asrob?! Nas valas com matéria putr...?!" – horrorizou-se Malayak.
"O lodo irá protegê-los" – respondeu ríspido Lúcifer.
"Não poderíamos lançá-los no poço, no Prahi?" – indagou timidamente Moloch.
"Não!" – gritou Lúcifer. – "Não caberiam todos! E o que fariam? Amontoá-los-iam? Empilhá-los-iam? E fechariam o poço depois para sufocá-los?!"
Eles assentiram ao Kami e recolheram suas armas para se dirigirem às cabanas dos qedoshins.
"Esperem! Hara, Uzza, Melek e Malachim, vocês ficam ainda" – ordenou Lúcifer ao grupo que se retirava para cumprir suas ordens.
Eles ficaram.
"Melek e Hara, assim que arrebanharem os qedoshins, deixem os outros levá-los e vocês recolham todas as cobertas que encontrarem e mergulhem-nas no lodo de Asrob. Tragam-nas encharcadas. Os outros irão ajudá-los a carregá-las."
Eles assentiram e foram. Então, Lúcifer voltou-se para os dois que restavam.
Uzza observava-os se afastando e, voltando-se para Lúcifer, comentou, já que se sentia a sós com seu Kami:
"Sandalphon não vai gostar."
"Dane-se, Sandalphon! O que ele sabe? Eu ainda sou o Kami! Se ele quer o meu lugar, então que aprenda que alguns males são para o bem" – resmungou Lúcifer.
Uzza concordou com um sorriso de esgar.
"Uzza e Malachim, vistam suas proteções e recolham as colmeias, mas deixem as abelhas dormindo, aqui perto. Quando chegar o momento, as colmeias serão lançadas e despertadas."
Eles assentiram e foram.
Malachim não dizia palavra e Uzza estava assombrado demais com seu Kami para comentar todo o espanto que lhe tomava a mente.

Lúcifer deixou Pakchisinha cuidando das feras e aves e subiu no mais alto galho de Gaokerena para observar as manobras do Exército.
Viu o cerco de grades de ferro sendo firmado pelas faces do Jardim, até onde chegava a luz das tochas.
Viu que erguiam um portão, pareciam testar-lhe as dobradiças e voltavam a depositá-lo no chão. Isso era bom.
Viu as lanternas nas janelas das casas da cidade mostrando as silhuetas de seus habitantes... às vezes, pareciam-lhe sombras de kshatryas.
Fazia sentido.
Receberem suprimentos, resguardarem-se.
Primeiro os arqueiros de Zara.
Depois, quem viria? Patti? Parazudhara? Zastra? Bhuranyu?...
A madrugada avançava... Não seria agora, concluiu desejando.
Voltou-se para Birs Nimrud... a torre de Deus, para sua última janela.
Estava às escuras... quando o Cant de Ceu inteiro, até onde a vista alcança, ardia com o fogo das tochas e lanternas... o pavimento violeta encolhia-se na escuridão.
Os olhos de Lúcifer lampejaram um brilho sinistro e murmurou, tenebroso:
"Oferenda..."
Ele olhava e seus olhos viam um leve reflexo na última janela. Ele tinha certeza de que era a máscara de Deus.
Com seu âmago revolto e contraído, sussurrou para Deus:
"Sacerdote, então é isso? Nem eu, nem nenhum de nós será sua oferta!" – ... – “Tu eras um pai para nós...”
E o reflexo sumiu.
Lúcifer percebeu, entre os guinchos das grades, um alarido abafado.
Eram por certo os gritos dos qedoshins sendo enredados e lançados nas valas de Asrob.
Virou-se para a última face do Jardim que estava em completa escuridão.
Teria Thmé conseguido passar o labirinto?
Riu-se sozinho, imaginando-o entregar o embrulho a Deus e lamentou que não estaria presente para ver Sua face quando o abrisse... Seus olhos quando lesse sua carta... A sua prece...
E não ficou exatamente triste, não estava triste. Era mágoa, decepção, raiva...
Sentiu um tremor em seu peito ao pensar no risco de seu ato... enviar o embrulho a Deus e através de quem.
Lembranças...
Despertou com o silvo de uma flecha incendiária que passou raspando por seu ombro, chamuscando seus cabelos e indo se apagar nas águas de Saras.
Desequilibrou-se, mas foi amparado pelos galhos de Gaokerena.

Seus qedoshins e aions já estavam à beira do lago. Acenavam, chamando-o.
Uzza já estava logo abaixo da copa, pronto a amparar sua queda.
Lúcifer desvencilhou-se e saltou da árvore, gritando para que entrassem nas águas e erguessem as cobertas empapadas sobre suas cabeças.
Procurou Pakchisinha.
Ele segurava os arreios das aves e feras, puxando-as e desviando-as das flechas que chegavam.
Lúcifer apontou-o para Uzza e acorreu a ajudá-lo.
Uzza seguiu-o.
Os três arrastaram-nas para as águas.
Ficaram todos meio mergulhados, sustentando as cobertas acima de suas cabeças num braço e, com o outro, segurando suas armas.
O Jardim começou a arder.

Uzza cutucou Lúcifer e acenou com a cabeça, apontando-lhe onde estavam as colmeias.
Ele entendeu. Perderiam-nas e estava difícil manterem-se na água com a agitação das feras e muluks frente ao fogo, ao alarido dos pássaros que se batiam e se chocavam no ar, penas em fogo, desorientados.
O Jardim estava queimando... suas árvores, seus arbustos, suas flores, seus gramados, seus ninhos... gemeu. Tudo o que ele cultivou, todos os seus animais, a obra de toda sua vida!
Ele não teria mais lágrimas para Deus.
Os qedoshins... dane-se! Às chamas com Sandalphon!
E Thmé?...
Sacerdote...
Lúcifer gritou alto para que sua voz se levantasse acima do crepitar, do desespero, dos rugidos.
"Pakchisinha, leve os muluks e as feras para as bordas, esteja pronto a soltar-lhes as asas... e não solte os laços!"
Um ruído grave e abafado no centro do lago.
As árvores de Deus queimavam...
"Ouçam todos, vamos sair! Todos juntos, pela passagem, pelo portão!"
Alguém gritou:
"Pela frente? Para eles?"
E Lúcifer gritou mais alto:
"Pela frente, para eles! Eles não estão esperando. É a única saída! O portão não está pronto, ele pode cair. Vamos fazê-lo cair e, depois, todos juntos para Hastinâpura!"
O kshatrya entendeu... qualquer exército para...
Os demais... o desespero... não importava.
Lúcifer encarou Uzza:
"Peguem as colmeias. Terão que correr!" – e segurando o amigo de encontro a si: – "Estarei logo atrás com Pakchisinha. Não passem o portão! Lancem as colmeias e se afastem. Quando passarmos, juntem-se a nós!"

Os dois qedoshins passaram correndo, cobertos, carregando quantas colmeias suas mãos foram capazes de segurar.
O grupo lançou-se em seu encalço, arrastado pelas quimeras, simorghs e muluks apavorados pelo fogo. Iam cobertos por placas de lodo. O calor endureceu-as, transformando-as numa couraça. Um casco que exalava um vapor...

Ninguém percebeu a aproximação dos qedoshins e, quando os kshatryas e pedreiros que instalavam o portão deram por si, viram apenas grandes bolotas voarem por cima de suas cabeças, levando um enxame de abelhas furiosas que os ferroavam e zumbiam ensurdecedoras ao redor.
Foi muito rápido, o tempo de os arqueiros mal rearmarem seus arcos, foi o tempo de o portão vir abaixo, derrubado por simorghs, quimeras e muluks que corriam e avançavam, alguns desembestaram pela avenida, atacando qualquer coisa que lhes trombasse à frente.
E em meio ao caos, o grande casco fumegante seguia para o sul... para Hastinâpura, desferindo golpes de machado, perfurando com seus garfos, decepando com as lâminas dos alfanjes!
O tumulto despertou os kshatryas que descansavam nas casas.
O Zrî não contava com isso, enfrentá-los!
Os kshatryas corriam para a avenida, carregando apenas o que suas mãos alcançaram, muitos sem armaduras, sem elmo, todos desorganizados.
Quando o Zrî ordenou que soassem as trombetas de ataque, a cidade já era um pandemônio.
Na confusão, o Zrî foi ferroado por abelhas no pescoço, ao agitar os braços com a cabeça abaixada para arrancá-las, não viu o simorgh desembestado que investiu contra si, saltando em sua direção... e foi interceptado por uma maça! Chocou-se com Parigha, que foi quase que dilacerado antes que a violência de sua maça pudesse destroçar a fera, mas destroçou-a...
O Zrî olhou à sua volta, uma balbúrdia!...
Estupefato, observou o rastro que Lúcifer havia deixado. Eles arrastaram o que estava em seu caminho. Muitos arqueiros foram pisoteados. Muitos outros foram ferroados. Alguns queimaram-se.
Viu um corpo de aion, um dos pedreiros, esmagado debaixo do portão.
Era difícil distinguir quem foi ferido pelas garras e presas das feras e quem foi pelas armas de Lúcifer, ou deles.
Até algumas casas foram atingidas pelo fogo de flechas perdidas. Outras, invadidas pelas feras.
Viu um outro aion que chorava segurando o rosto, havia sido bicado por um muluk na face, estava cego e ele não era o único.
Zara tinha o rosto todo arranhado por garras e, nas mãos, perfurações de bicadas.
O Zrî inflou-se, tornou-se Zrechtha.
Então... Lúcifer queria GUERRA!

O resto dos aions assistiu ao espetáculo de horror por entre as frestas de suas casas, os que tiveram sorte.
Outros jaziam ferroados, queimados, até mesmo dilacerados. Eram, na maioria, os aions pedreiros que auxiliavam nos ferros, eles não tiveram tanta sorte. Para alguns, foi o fim.
Do outro lado da avenida, atrás das grades, o Jardim ardia como uma grande fênix enjaulada, uivando.

E foi assim que surgiu a legião de Lúcifer, como uma grande besta encouraçada de metano, bramindo foices, alfanjes, garfos, machados e rodeada pelo enxame e pelas feras que ferroavam, rasgavam, dilaceravam, perfuravam, arranhavam ao comando de Lúcifer. E o Kami, impiedoso, pisoteando aqueles que se pusessem em seu caminho, após roubar a criação de Deus para si.

Depois de avançarem muito, o grupo de Lúcifer diminuiu o ritmo e passou a andar, subindo a montanha.
Não estavam sendo perseguidos.
Puderam parar e fazer sua contagem.
Estavam todos aions lá, inteiros ou não.
Pakchisinha tinha o rosto banhado em lágrimas, trazia duas quimeras, um simorgh e nenhum muluk, e muitos cordões de laço arrebentados. Ele não teve força para segurá-los.
Ninguém disse nada.
Olharam para a cidade que ficou para trás em meio ao caos.
As labaredas lambiam os céus, uma grande nuvem de pontilhados pretos tinha se elevado do Jardim e rumava para o norte.
Voltaram-se para o sul e arrastaram-se dispersos rumo a Hastinâpura, apoiando-se em suas armas, silenciosos.
Não tinha acabado.
Lúcifer ficou um pouco mais a olhar o Jardim.
Uzza aguardou silencioso a seu lado. O que mais ele poderia fazer?

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